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Relações Internacionais (R:I)

versión impresa ISSN 1645-9199

Relações Internacionais  no.58 Lisboa jun. 2018

https://doi.org/10.23906/ri2018.58a06 

HANS MORGENTHAU E POLITICS AMONG NATIONS

As curiosas implicações do realismo de Morgenthau para a doutrina da guerra justa

The striking implications of Morgenthau’s realism for just war theory

 

Pedro Tiago Ferreira

Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa | Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa – Alameda da Universidade, 1600-214 Lisboa – Portugal | pedrotsferreira@yahoo.com

 

RESUMO

O artigo visa expor a visão do realismo clássico, cuja grande figura é Hans Morgenthau, sobre a admissibilidade da guerra enquanto instituição jurídico-política numa era em que a tecnologia permitiu a criação e desenvolvimento de armas nucleares, bem como as implicações que esta visão tem para a doutrina da guerra justa.

Palavras-chave: Armas nucleares, guerra justa, realismo clássico, Hans Morgenthau.

 

ABSTRACT

The article aims at expounding the classical realist view – whose figurehead is Hans Morgenthau – on the admissibility of war as a legal-political institution in a period when technology enabled the creation and development of nuclear weapons, as well as the implications of this view for just war theory.

Keywords: Nuclear weapons; just war; classical realism; Hans Morgenthau.

 

Segundo Hans Morgenthau, os conceitos de guerra e de paz são ideias «básicas para a discussão da política mundial nas décadas finais do século XX, quando uma acumulação sem precedentes de poder destruidor confere ao problema da paz uma urgência que ele jamais tivera»1 . A preocupação de Morgenthau com a questão da paz advém do progresso tecnológico. Por um lado, não é acidental, refere Morgenthau, que o surgimento do totalitarismo coincida com o desenvolvimento de tecnologias modernas nos campos da comunicação, dos transportes e da condução da guerra. Para o autor, estas tecnologias proporcionam aos governos contemporâneos ferramentas com as quais passa a ser relativamente fácil penetrar a esfera que a tradição sempre reservou para o indivíduo e a sua liberdade. Com efeito, nota Morgenthau, antes do advento da era tecnológica, nenhum governo se poderia ter tornado totalitário devido à limitação dos recursos tecnológicos até então existentes2 ; Hannah Arendt, por seu turno, coloca a propaganda no centro do movimento totalitário: «as massas têm de ser conquistadas por meio da propaganda.» Contudo, devido ao facto de,

«(s)ob um governo constitucional e havendo liberdade de opinião, os movimentos totalitários que lutam pelo poder pode(re)m usar o terror somente até certo ponto e, como qualquer outro partido, necessita(re)m granjear aderentes e parecer plausíveis aos olhos de um público que ainda não está rigorosamente isolado de todas as outras fontes de informação»,

torna-se necessário, tal como Morgenthau observa, que haja meios tecnológicos para se disseminar uma propaganda eficaz e, acima de tudo, abrangente. Com efeito,

«(q)uando o totalitarismo detém o controle absoluto, substitui a propaganda pela doutrinação e emprega a violência não mais para assustar o povo (o que só é feito nos estágios iniciais, quando ainda existe a oposição política), mas para dar realidade às suas doutrinas ideológicas e às suas mentiras utilitárias».

No entanto, o caminho para o controlo absoluto passa, em primeira instância, pela propaganda: «Por existirem num mundo que não é totalitário, os movimentos totalitários são forçados a recorrer ao que comummente chamamos propaganda.» O requisito da abrangência encontra-se na circunstância de que a

«propaganda é sempre dirigida a um público de fora – sejam as camadas não totalitárias da população do próprio país, sejam os países não totalitários do exterior. Essa área externa à qual a propaganda totalitária dirige o seu apelo pode variar grandemente; mesmo depois da tomada do poder, a propaganda totalitária pode ainda dirigir-se àqueles segmentos da própria população cuja coordenação não foi seguida de doutrinação suficiente»3.

Ora, tal só é possível, como defende Morgenthau, a partir do surgimento de meios tecnológicos que permitam disseminar a propaganda de uma forma tão abrangente como a que Arendt sugere ser necessária para que os movimentos totalitários obtenham sucesso. Por este motivo, poder-se-ia afirmar, tal como Morgenthau o faz, que a liberdade do indivíduo, antes do advento da era tecnológica, se encontrava protegida pela incapacidade do governo em destruí-la completamente4.

Por outro lado, o desenvolvimento de armas de destruição maciça, com especial incidência no tocante às armas nucleares, provocou uma mudança radical no âmbito da política externa dos estados, visto que, devido ao aparecimento de armas nucleares, os humanos passaram a ter, pela primeira vez na história, os meios técnicos para provocar a extinção total da humanidade5. Apesar de, num curto período da sua carreira, Morgenthau ter defendido a hipótese de se usar meios nucleares limitados6, a subsequente mudança de ideias, por parte do autor, provocada em grande medida pela constatação de que o recurso a meios nucleares não é, simplesmente, limitável7, implica o reconhecimento da sua parte de que o recurso à guerra enquanto meio para se fazer política8 deixou, com o advento das armas nucleares, não só de ser uma solução legítima, tanto de um ponto de vista moral como jurídico9, mas principalmente de ser uma opção exequível em termos sociais e económicos em virtude dos custos altíssimos inerentes a uma guerra com estas características10, onde se incluem os elevados custos humanos provocados pelo uso de armas de destruição maciça11. Com efeito, qualquer guerra travada nestes moldes mais não seria do que uma vitória pírrica12. Por este motivo, Morgenthau não hesitou em afirmar, em 1954, que, à época, todas as nações detinham um interesse comum que transcendia quase todos os outros, a saber, o de evitar uma guerra geral13.

Não obstante os custos elevados das duas guerras mundiais, que, em certos momentos, chegaram a ser encaradas como guerras totais14, os mesmos não são comparáveis aos de uma guerra nuclear. Como o demonstra a Guerra Fria, a ameaça nuclear terá porventura funcionado como um deterrente mais eficaz contra o despoletar de uma guerra geral15 do que o exemplo fornecido pelas duas guerras mundiais, cujos custos, longe, apesar de tudo, de poderem vir a causar a extinção da humanidade, não seriam encarados como proibitivos, o que teria como consequência a manutenção do instituto da guerra como um meio idóneo de se fazer política. A favor desta posição encontra-se uma observação de Bertrand Russell, segundo a qual é necessário, no respeitante a qualquer guerra, considerar não a sua justificação formal, obtenível através do exame a acordos alcançados no passado, mas sim a sua justificação real, que só pode ser encontrada no bem que a guerra em questão trará à humanidade16. Isto implica que, por não resultar em quaisquer benefícios humanitários, o conflito armado com recurso a armas nucleares é, em qualquer circunstância, inadmissível. Dir-se-á, no entanto, que semelhante advertência não tem a capacidade de eliminar a guerra enquanto instituição política; a mesma deve ser mantida e passível de utilização sempre que, como refere Russell, a sua realização possa, no cômputo global, ser benéfica para a humanidade. No entanto, para que tal aconteça, os pressupostos avançados pela doutrina da guerra justa devem encontrar-se preenchidos, ou seja, devem respeitar-se os princípios da causa justa, da proporcionalidade, do último recurso e da imunidade dos não combatentes17.

Contudo, o advento de armas nucleares não permite a utilização da guerra enquanto meio para a prossecução de um determinado objetivo porque as mesmas não podem ser empregues, dado que inclusive os estados possuidores de armas nucleares se deparam com a perspetiva de serem completamente aniquilados por outros estados tecnologicamente equiparáveis; este cenário de destruição mútua retira quaisquer benefícios que poderiam ser obtidos através do uso da guerra enquanto instituição política18, e, por isso, a sua manutenção dependeria do bom senso dos próprios beligerantes, que teriam que autoexcluir a sua capacidade nuclear abstendo-se efetivamente de a usar. Por estes motivos, e tal como veremos na parte final deste estudo, o realismo disputa a aplicabilidade do raciocínio de Russell ao mundo tal como o conhecemos atualmente, visto que a mera existência de armas nucleares será suficiente para impedir a produção, por parte da guerra, de quaisquer benefícios.

Ora, o tempo encarregou-se de demonstrar que, em guerras localizadas, seja pelo número reduzido de participantes ou pela circunscrição geográfica das mesmas, continua a ser possível utilizar a guerra como forma de se fazer política sem se despoletar qualquer cenário apocalíptico de destruição mútua19; sem embargo, os receios de Morgenthau são plenamente fundados e permanecem atuais, visto que existem sérias dúvidas de que o bom senso evidenciado, desde Hiroxima até ao momento presente, pelas potências nucleares ao se coibirem de utilizar essa mesma capacidade nuclear no âmbito dos conflitos armados em que se têm envolvido20, se manteria caso surgisse, ao invés de conflitos localizados, um conflito geral. Como observa Gerald Segal, não obstante não ser necessário encarar a proliferação de armas nucleares como causa de pânico, a mesma será causa de preocupação devido em grande medida ao perigo de uma guerra catalítica, isto é, de uma guerra resultante da circunstância de estados relativamente pequenos, mas possuidores de armas nucleares, poderem vir a arrastar para o conflito potências maiores, detentoras de armas mais poderosas21. Devido essencialmente a este fator perene de irracionalidade, que mantém o perigo de uma guerra geral com recurso a armas de destruição maciça como uma espada de Dâmocles sobre a humanidade22, urge pensar a problemática da paz, cuja premência não diminuiu desde que Morgenthau efetuou a observação citada no início deste estudo.

A solução avançada pelo próprio Morgenthau com o intuito de resolver este problema situa-se na tradição kantiana de feição cosmopolita23. Poderá à primeira vista parecer que a solução em questão se demarca da proposta de Immanuel Kant para se alcançar a paz perpétua. Como é sabido, Kant, ao observar que os «povos, enquanto Estados, podem considerar-se como homens singulares que, no seu estado de natureza (isto é, na independência de leis externas), se prejudicam uns aos outros já pela sua simples coexistência», sugere que cada um destes estados, «em vista da sua segurança, pode e deve exigir do outro que entre com ele numa constituição semelhante à constituição civil, na qual se possa garantir a cada um o seu direito». Esta constituição

«seria uma federação de povos que, no entanto, não deveria ser um Estado de povos (…) porque todo o Estado implica a relação de um superior (legislador) com um inferior (o que obedece, a saber, o povo) e muitos povos num Estado viriam a constituir um só povo, o que contradiz o pressuposto (temos de considerar aqui o direito dos povos nas suas relações recíprocas enquanto formam Estados diferentes, que não se devem fundir num só)»24.

O corolário desta federação seria o alcance da paz perpétua à escala global. Com efeito, na ausência de uma federação de estados, «o modo como (estes) perseguem o seu direito nunca pode ser, como num tribunal externo, o processo, mas apenas a guerra»; contudo,

«o direito não se pode decidir por meio dela nem pelo seu resultado favorável, a vitória, e dado que pelo tratado de paz se põe fim a uma guerra determinada, mas não ao estado de guerra (possibilidade de encontrar um novo pretexto para a guerra, a qual também não se pode declarar como justa, porque em tal situação cada um é juiz dos seus próprios assuntos)»,

torna-se necessário estabelecer

«uma federação de tipo especial, a que se pode dar o nome de federação da paz (foedus pacificum), que se distinguiria do pacto de paz (pactum pacis), uma vez que este tentaria acabar com uma guerra, ao passo que aquele procuraria pôr fim a todas as guerras e para sempre»25.

Kant defende, por conseguinte, a instituição de uma federação26 de estados que permaneceriam distintos uns dos outros e soberanos. Morgenthau, por seu turno, propõe a criação de um Estado Mundial para o qual os estados atualmente existentes transfeririam as suas soberanias individuais, e que, em resultado dessa mesma transferência, passaria a ser tão soberano sobre os estados em questão como estes o são no âmbito dos seus próprios territórios27. Ora, uma análise mais detida sobre estas ideias de Kant e de Morgenthau revela que, não obstante a diferença terminológica empregue por estes autores, os efeitos produzidos pela hipotética implementação de cada uma das referidas ideias seriam em tudo semelhantes. As duas propostas vão no sentido de se criar condições para que os diferendos entre as unidades políticas contemporaneamente designadas por «estados» passem a ser resolvidos exclusivamente através do direito, postergando-se a força e eliminando-se a guerra enquanto instituto político-jurídico. Isto não significa, naturalmente, que seria totalmente indiferente adotar a proposta de Kant ou a de Morgenthau, dado que existem diferenças procedimentais importantes entre ambas, nomeadamente ao nível do controlo político efetuado sobre os governantes por parte dos cidadãos; dito de outro modo, não é uma questão absolutamente indiferente viver sob a soberania de um único Estado, com jurisdição à escala mundial, ou sob a soberania de um Estado que faz parte, juntamente com os demais estados da comunidade internacional, de uma confederação. No entanto, o principal objetivo que ambos os autores têm em mente, a saber, o de alcançar uma paz duradoura, e não meramente contingencial, seria atingível, em tese, independentemente da configuração institucional adotada. Precisamente por este motivo pode afirmar-se que a proposta de Morgenthau, de feição cosmopolita, é neokantiana, não obstante o autor se ter constantemente insurgido, ao longo da sua obra, contra o neokantismo28.

Morgenthau, contudo, encontra-se ciente de que a proposta por si avançada é, tendo em atenção as condições reais existentes à época, irrealizável. Com efeito, a possibilidade de criação de um Estado Mundial depende, na ótica de Morgenthau, de uma resposta afirmativa a cada uma das seguintes questões:

«Estarão os povos do mundo realmente desejosos de aceitar um governo mundial, ou pelo menos não tão hostis à idéia, a ponto de erguerem um obstáculo intransponível ao seu estabelecimento? Estariam eles dispostos e capacitados a fazer o que for necessário para manter de pé tal governo mundial? Estariam eles dispostos e capacitados a fazer, ou deixar de fazer, o que um governo mundial deles requer, para poder cumprir os seus objetivos?»29

Ora, tal como Morgenthau corretamente nota, as «respostas (às três questões) só podem ser negativas»30, observação que se mantém atual. Na medida em que não há uma sociedade à escala global capaz de alicerçar um Estado Mundial31, dado que «(o) que existe na realidade é uma sociedade internacional de nações soberanas», e não «uma sociedade supranacional que compreenda todos os membros individuais de todas as nações e que, portanto, seja idêntica à humanidade politicamente organizada»32, não seria possível tentar sequer a criação de um Estado Mundial sem se correr o risco, para utilizar uma expressão de Kenneth Waltz, de se endereçar «um convite para a preparação da guerra civil mundial». O argumento de Waltz é o seguinte:

«Se os riscos de guerra são insuportavelmente altos, poderão ser reduzidos se se organizar a administração dos assuntos das nações? No mínimo, administrar requer que se controle as forças militares que estão à disposição dos estados. Dentro das nações, as organizações têm de se esforçar por sobreviver. Como organizações, as nações, ao trabalharem para sobreviverem, algumas vezes, têm de usar a força contra elementos e áreas dissidentes. Como sistemas hierárquicos, os governos, nacional ou globalmente, são perturbados pela dissidência de partes importantes. Numa sociedade de estados com pouca coerência, as tentativas de um governo mundial seriam fundadas na incapacidade de uma autoridade central emergente, de mobilizar os recursos necessários para criar e manter a união do sistema regulando e administrando as suas partes. A perspetiva de um governo mundial seria um convite para a preparação da guerra civil mundial»33.

A partir dos argumentos de Morgenthau e de Waltz retira-se, portanto, a conclusão de que quaisquer tentativas em forçar a criação de um Estado Mundial seriam não só infrutíferas, mas também nocivas; com efeito, sem uma sociedade mundial que sirva de base a semelhante Estado, o mesmo estaria condenado ao insucesso, dando inclusive azo a situações de conflito armado que, de outra forma, não surgiriam, algo que consubstanciaria a perfeita antítese daquilo que Morgenthau tem em mente atingir através da sua proposta.

Não obstante a inexiquibilidade política da sugestão de Morgenthau, a mesma tem o mérito filosófico de demonstrar, quando conjugada com a doutrina da guerra justa, que será moralmente ilegítimo recorrer à guerra em quaisquer circunstâncias. Tal como resulta dos argumentos de Morgenthau, a necessidade de criação de um Estado Mundial advém apenas e só da imperatividade de se impedir facticamente (com o auxílio de instrumentos jurídicos coercivos) que os estados recorram à guerra como instrumento político em virtude de os meios disponibilizados pela tecnologia serem condutíveis à aniquilação da humanidade. Isto significa que, enquanto as armas nucleares se encontrarem disponíveis para utilização, não havendo, com efeito, quaisquer indicações de que as mesmas possam vir a ser integralmente destruídas no futuro, não será moralmente legítimo entrar em guerra com outro sujeito de direito internacional mesmo que quem o considere fazer tenha uma causa justa (e.g., atue em legítima defesa) ou o faça como último recurso. De facto, se Morgenthau tiver razão, e o Estado Mundial for o único meio idóneo para se resolver pacificamente, através do direito, aquilo que o próprio autor famosamente designa por «tensões»34, evitando-se assim cenários de conflito armado que poderão, sem grande dificuldade, envolver armas nucleares, então da sua posição resulta lógica e necessariamente que a resolução de tensões por meios não pacíficos poderá com relativa facilidade conduzir à infração de dois dos princípios nucleares da guerra justa, a saber, o da proporcionalidade e o da imunidade dos não combatentes. Por este motivo, será sempre ilegítimo recorrer à guerra mesmo em situações em que existe uma causa justa, como, por exemplo, a legítima defesa, e em que tal é feito como último recurso, devido à destrutividade dos meios que serão empregues para, no limite, evitar a captura ou destruição do Estado em questão. Dito de outro modo, seria preferível perder uma guerra a defender o Estado à beira de uma derrota com recurso a armas nucleares devido ao potencial destrutivo das mesmas, que consubstanciaria em qualquer circunstância um uso desproporcional de força e um desrespeito pela imunidade dos cidadãos não combatentes do Estado inimigo, bem como das demais pessoas aí residentes.

Para terminar, gostaríamos de notar que esta conclusão não deixa de ser curiosa na medida em que oferece uma perspetiva que acarreta uma inversão total da forma como o realismo clássico, que tem o seu grande expoente em Morgenthau, é tradicionalmente encarado pelos seus críticos. Sem prejuízo das várias nuances introduzidas por autores distintos, o realismo clássico é normalmente visto como sendo amoral ou imoral porque, entre outras coisas, permite a utilização da guerra como instrumento para se fazer política, isto é, admite que os estados possam recorrer a meios não pacíficos para alcançarem os seus desideratos35. Independentemente do mérito destas posições, que não pode aqui ser discutido36, não deixa, com efeito, de ser intrigante que uma posição filosófica frequentemente apelidada de amoral ou imoral desemboque na conclusão de que a violência é simplesmente inadmissível enquanto meio de resolução de conflitos internacionais; de facto, a doutrina da guerra justa, que tem como pretensão movimentar-se dentro de padrões de moralidade tidos por universais, conduz a uma solução diversa, dado que se alicerça na busca de motivos que justificam o recurso à guerra enquanto instrumento jurídico-político37. O realismo vai mais além ao concluir que a guerra não é simplesmente aceitável devido ao potencial destrutivo dos meios à disposição. Os cultores da doutrina da guerra justa concordarão, seguramente, com os realistas que, na senda de Morgenthau, defendem a inadmissibilidade, em qualquer circunstância, do uso de armas nucleares, em virtude de estas infringirem os princípios da proporcionalidade e da imunidade dos não combatentes; no entanto, não rejeitam a admissibilidade da guerra, afastando apenas o uso de certos meios. Cremos que esta circunstância revela o que verdadeiramente separa o realismo das demais doutrinas filosóficas que assentam quase exclusivamente na ética: as últimas são idealistas, isto é, confiam ingenuamente que se pode manter a guerra enquanto instituição política e jurídica porque, implicitamente, creem que meios altamente destrutivos como as armas nucleares não seriam utilizados por líderes políticos em quaisquer circunstâncias. O realismo, por outro lado, não se afasta da ética, tal como esperamos ter demonstrado ao longo deste artigo; o realismo vai, isso sim, para além da ética, tem em atenção outros fatores, alguns contingenciais, outros permanentes, o que conduz os realistas a duvidarem quanto à capacidade de os líderes políticos se manterem racionais no auge de um conflito armado, coibindo-se de usar armas nucleares em cenários em que tal utilização se afigure como a única alternativa idónea para evitar a captura ou destruição do seu Estado. O ceticismo próprio do realismo conduz a uma situação de desconfiança que leva os realistas a argumentarem que será, a longo prazo, mais benéfico para a humanidade simplesmente desenvolver mecanismos jurídico-institucionais que precluam a guerra em virtude de não haver quaisquer garantias de que cenários apocalípticos de destruição mútua e total serão evitáveis enquanto subsistirem armas nucleares nos arsenais dos beligerantes.

 

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Data de receção: 5 de abril de 2018 | Data de aprovação: 30 de maio de 2018

 

NOTAS

1 MORGENTHAU, Hans – A Política entre as Nações. São Paulo: UNB, 2003,  pp. 44-45.

2 MORGENTHAU, Hans – Science: Servant or Master?. Nova York: New American Library, 1972, p. 80.

3 ARENDT, Hannah – As Origens do Totalitarismo. 4.ª edição. Lisboa: D. Quixote, 2010, pp. 451-453.

4 MORGENTHAU, Hans – Science: Servant or Master?, p. 80.

5 RÖSCH, Felix – Power, Knowledge and Dissent in Morgenthau’s Worldview. Nova York: Palgrave MacMillan, 2016, p. 115.

6 O argumento é desenvolvido a propósito da putativa conduta a adotar pelos Estados Unidos no âmbito da Guerra Fria com a União Soviética. MORGENTHAU, Hans – «Has atomic war really become impossible?». In Bulletin of the Atomic Scientists. Vol. 12, N.º 1, 1956, p. 9. Tal como observado por Campbell Craig, o período entre 1955 e 1957, no qual Morgenthau defendeu, simultaneamente, a existência de uma revolução diplomática ocasionada pela Cimeira de Genebra de 1955, a necessidade de os Estados Unidos aumentarem a sua postura de confronto perante a União Soviética, e a execução de uma política de guerra nuclear limitada, consiste na fase em que as inconsistências no pensamento de Morgenthau atingiram o seu auge, dado que o autor contraria algumas das posições teóricas por si desenvolvidas no âmbito do realismo antes deste período, e às quais haveria, posteriormente, de regressar. CRAIG, Campbell – Glimmer of a New Leviathan. Columbia University Press, 2003, pp. 98-100, 103 e 114.

7 MORGENTHAU, Hans – «Death in the nuclear age». In Commentary, 1961. (Consultado em: 10 de maio de 2018). Disponível em: https://www.commentarymagazine.com/articles/death-in-the-nuclear-age/.

8 Quanto à questão de a guerra ser um meio de se fazer política, cf. CLAUSEWITZ, Carl von – Vom Kriege. CreateSpace Independent Publishing Platform, 2016, p. 14.

9 Para uma panorâmica histórica sobre a doutrina da guerra justa, incluindo as suas vertentes moral e jurídica, cf. AA.VV. – The Ethics of War. Blackwell, 2006.

10 Sobre os custos sociais e económicos resultantes da utilização de armas nucleares, cf. COCHRANE, Hal, e MILETI, Dennis – «The consequences of nuclear war: an economic and social perspetive». In The Medical Implications of Nuclear War. Washington, DC: National Academy Press, 1986, pp. 381-409.

11 Sobre o custo humano proveniente do uso de armas nucleares, que se faz sentir inclusive quando as mesmas são somente testadas, cf. BERNARD, Vincent – «A price too high: rethinking nuclear weapons in light of their human cost». In International Review of the Red Cross. Vol. 97, N.º 899, 2015, pp. 499-506.

12 Sobre a origem e significado da expressão, bem como acerca da vida do rei Pirro, cf. CHAMPION, Jeff – Pyrrhus of Epirus. Pen and Sword, 2017.

13 MORGENTHAU, Hans – «The yardstick of national interest». In Annals of the American Academy of Political and Social Science. N.º 296, 1954, p. 83.

14 Joseph Kohler, por exemplo, num texto contemporâneo da Primeira Guerra Mundial, adjetiva, através do termo Wirtschaftskrieg, a conduta dos britânicos no seu esforço de guerra, dado que estes, segundo Kohler, não se coibiam de atacar civis, violando frontalmente um dos princípios da guerra justa, a saber, o da imunidade dos não combatentes. Cf KOHLER, Joseph – «Das neue Völkerrecht». In Zeitschrift für Völkerrecht. Vol. XI, 1916, p. 7. Sobre o princípio da imunidade dos não combatentes cf. WALZER, Michael – Just and Unjust Wars. 5.ª edição. Basic Books, 2015, pp. 138-159.

15 Uma hipotética guerra geral seria, naturalmente, consequência da entrada em cena dos estados aliados quer dos Estados Unidos, quer da União Soviética, no caso de deflagrar um conflito armado entre estes dois estados, que eram os principais atores da Guerra Fria. Sobre o equilíbrio militar entre os Estados Unidos e a União Soviética e o papel das armas nucleares no desenrolar da Guerra Fria cf. WALSH, David M. – The Military Balance in the Cold War. Londres-Nova York: Routledge, 2008.

16 RUSSELL, Bertrand – «The ethics of war». In International Journal of Ethics. Vol. 25, N.º 2, 1915, p. 130.

17 Sobre estes princípios cf. LANGO, John W. – The Ethics of Armed Conflitct. Edimburgo: Edinburgh University Press, 2014.

18 RÖSCH, Felix. – Power, Knowledge and Dissent in Morgenthau’s Worldview, p. 116.

19 Com efeito, na era nuclear os países desenvolvidos e as superpotências têm-se envolvido menos em situações de conflito armado do que os países em vias de desenvolvimento. SEGAL, Gerald – «Strategy and survival». In Nuclear War and Nuclear Peace. Londres: MacMillan, 1983, p. 31.

20 De notar que, desde 1945 até ao presente, a esmagadora maioria dos conflitos armados foi ou entre estados que não são potências nucleares, ou entre estados que são potências nucleares e estados que não o são. No entanto, duas potências nucleares, Índia e Paquistão, envolveram-se num conflito armado, que ficou conhecido por «Conflito de Kargil». Para além disso, a Coreia do Norte e os Estados Unidos continuam tecnicamente em estado de guerra, embora não se tenham registado conflitos armados entre os dois países desde que ambos se tornaram potências nucleares.

21 SEGAL, Gerald – «Strategy and survival», p. 31.

22 Sobre a espada de Dâmocles cf. CÍCERO – Cicero’s Tusculan Disputations. Edição em latim. Wentworth Press, 2016, vol. XXI, pp. 61-62.

23 Esta situação não deixa de ser curiosa na medida em que Morgenthau demonstra, em vários passos da sua obra, uma certa aversão a posições neokantianas. 
A título meramente exemplificativo, Oliver Jütersonke observa que Morgenthau, na senda de Arthur Baumgarten, considera que a distinção clara entre «ser» e «dever-ser», central para o neokantismo e para o trabalho, entre outros, de Hans Kelsen, é algo que não produz frutos. JÜTERSONKE, Oliver – Morgenthau, Law and Realism. Cambridge: Cambridge University Press, 2010, p. 87. Para além disto, Morgenthau argumenta que o neokantismo é a expressão fiel da decadência do pensamento filosófico nas universidades alemãs verificada no final do século XIX. Cf. MORGENTHAU, Hans – La Réalité des Normes: En particulier des normes du droit international. Fondements d’une théorie des normes. Paris: Alcan, 1934, p. XI apud KOSKENNIEMI, Martti – The Gentle Civilizer of Nations. Cambridge University Press, 2004, p. 455.

24 KANT, Immanuel – A Paz Perpétua. Covilhã: Universidade da Beira Interior, 2008, pp. 15-16.

25 KANT, Immanuel – A Paz Perpétua, pp. 17-18.

26 De realçar que, no final do século xviii, os termos «federação» e «confederação» eram habitualmente usados sinonimicamente com o intuito de designar o conceito ao qual, contemporaneamente, se faz referência através do termo «confederação». Isto é notório não só nos textos de Kant que lidam com esta questão, mas também em textos de outros quadrantes, como, por exemplo, The Federalist Papers.

27 «A experiência de duas guerras mundiais no espaço de um quarto de século, aliada à perspetiva de uma terceira que seria travada com armas nucleares, muito contribuiu para conferir uma urgência sem precedentes à conceção de um Estado Mundial. De acordo com esse ponto de vista, aquilo de que se precisa para salvar o mundo da autodestruição não é a limitação do exercício da soberania nacional, por meio de obrigações e instituições internacionais, mas sim a transferência das soberanias das nações individuais em favor de uma autoridade mundial, a qual passaria a ser tão soberana sobre estas, como elas o são dentro de seus territórios respetivos.» MORGENTHAU, Hans – A Política entre as Nações, p. 906.

28 Tendo em atenção o referido supra, nota 23, poder-se-á defender que Morgenthau se opõe somente a certas vertentes do neokantismo (e.g., a divisão rígida entre «ser» e «dever-ser»), mas não necessariamente às ideias políticas de Kant. Com efeito, as tendências cosmopolitas dos dois autores aproximam Morgenthau de Kant no tocante a questões político-filosóficas, ainda que, em referência a outros aspetos filosóficos, Morgenthau fosse decididamente antikantiano. Para um argumento a favor do cosmopolitismo de Morgenthau cf. MURRAY, A. J. H. – «The moral politics of Hans Morgenthau». In The Review of Politics. Vol. 58, N.º 1, 1996.

29 MORGENTHAU, Hans – A Política entre as Nações, p. 923.

30 Ibidem, p. 923.

31 A tradução desta passagem é a seguinte: «Nenhuma sociedade pode perdurar se tiver de coexistir com o presumido âmbito de poder de um Estado Mundial.» MORGENTHAU, Hans – A Política entre as Nações, p. 923. O original é o seguinte: «No society exists coextensive with the presumed range of a world state.» (MORGENTHAU, Hans – Politics among Nations. 7.ª edição. Caledónia: McGraw-Hill Education, 2005, p. 514. É por de mais evidente que a tradução se encontra errada, dado que transmite uma ideia totalmente distinta (e arbitrária) da intencionada por Morgenthau.

32 MORGENTHAU, Hans – A Política entre as Nações, p. 923.

33 WALTZ, Kenneth – Teoria das Relações Internacionais. Gradiva, 2002, p. 156.

34 «As controvérsias sobre alterações do status quo não só deixaram de ser apresentadas aos tribunais, como geralmente nem sequer foram formuladas em termos legais (...). Na base das disputas que envolvem o risco de guerra, existe sempre uma tensão entre o desejo de preservar a distribuição de poder então prevalecente e a vontade de derrubá-la. Tais apetites conflitantes (...) são raramente expressos nos termos apropriados – os termos de poder –, mas normalmente enunciados sob a forma de elevados princípios morais e legais. Os temos sobre os quais discursam os representantes dos países são princípios morais e pleitos legais, mas sua fala se refere na verdade aos conflitos de poder. Pretendemos tratar os conflitos de poder não formulados como “tensões” e chamar os conflitos expressos em termos legais como “disputas”.» MORGENTHAU, Hans – A Política entre as Nações, pp. 807-808.

35 NEACSU, Mihaela – Hans J. Morgenthau’s Theory of International Relations. Nova York: Palgrave MacMillan, 2009, p. 15.

36 A obra de Neacsu, mencionada na nota anterior, tem como principal objetivo refutar a conceção de que o realismo de Morgenthau é amoral ou imoral.

37 A análise detalhada dos princípios da guerra justa efetuada por Larry May, por exemplo, consubstancia uma procura de legitimação moral de atos de violência praticados no seio da guerra, nomeadamente através da delimitação de atos que constituem crimes de guerra por oposição a atos violentos lícitos (juridicamente) e legítimos (moralmente). Tal como a esmagadora maioria dos autores que se debruça sobre a tradição da guerra justa, May discute questões relacionadas com as armas nucleares sem, contudo, vislumbrar, ou sequer sugerir, que a mera existência das mesmas poderia, porventura, ser condição suficiente para uma proibição (moral e jurídica) in toto da guerra, sem quaisquer exceções ou causas de justificação. Cf. MAY, Larry – War Crimes and Just War. Cambridge University Press, 2007.

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