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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.18 no.1 Porto jun. 2022  Epub 30-Set-2022

https://doi.org/10.4000/laboreal.19440 

Textos Históricos

Como reconstituir a vida afetiva do passado? A sensibilidade e a História

Como restituir la vida afectiva de antaño? La sensibilidad y la historia

Comment reconstituer la vie affective d’autrefois? La sensibilité et l’histoire

How to reconstruct the emotional life of the old times? Sensitivity and history

Lucien Febvre

Tradução:

Flora M. G. Vezzá (floravezza@gmail.com)


Texto original: Febvre, L. (1941). Comment Reconstituer la Vie Affective d’Autrefois? La sensibilité et l’histoire. Annales d’Histoire Sociale, III, (1-2). Reimpressão em Combats pour l’histoire, 1952/1992 (pp. 221-238). [1]

A sensibilidade e a história: um tema novo. Não conheço um livro em que ele seja tratado. Também não vejo os muitos problemas que ele levanta formulados em qualquer outro lugar. Portanto, aqui (perdoem a um pobre historiador esse grito de artista) - aqui está um belo assunto. Tantas pessoas há que ficam tristes a cada passo: nada mais para descobrir, ao que parece, em mares muito desbravados. Que eles mergulhem na escuridão da Psicologia agarrada à História: eles vão recuperar o gosto pela exploração (p. 221).

[...]

Mas primeiro, duas palavras de definição. Sensibilidade é uma palavra bastante antiga, é registrada na língua pelo menos desde o início do século XIV; seu adjetivo, sensível, a precedeu um pouco, como pode acontecer. Ao surgir, como também acontece, a sensibilidade assumiu vários significados. Há os estreitos, há os mais amplos, que podem, até certo ponto, ser localizados no tempo. Assim, no século XVII, a palavra parece designar acima de tudo uma certa suscetibilidade do ser humano a impressões de ordem moral: fala-se muito então de sensibilidade à verdade, ao bem, ao prazer, etc. No século XVIII, a palavra refere-se a uma certa maneira particular de ter sentimentos humanos - sentimentos de piedade, tristeza, etc. E o trabalho dos que estudam os sinônimos consiste, sobretudo, em opor o sensível ao terno: sensibilidade, escreve, por exemplo, o abade Girard em seu tratado requintado sobre Sinônimos franceses (uso a edição revisada por Beauzée, Paris, 1780, vol. II, p. 38) - "a sensibilidade refere-se mais à sensação, e a ternura ao sentimento. Esta tem uma relação mais direta com os transportes de uma alma que se lança na direção dos objetos; ela é ativa. Aquela tem uma relação mais marcante com as impressões que os objetos produzem na alma; ela é passiva... O calor do sangue nos leva à ternura; a delicadeza dos órgãos entra na sensibilidade. Os jovens serão, portanto, mais ternos do que os velhos; os idosos mais sensíveis do que os jovens”.

Mas há outros significados da palavra. Sentidos meio científicos e meio filosóficos que a cultura, tal como é distribuída nas escolas secundárias, tende a tornar predominantes pouco a pouco. "Sensibilidade", como disse Littré logo de início: "a propriedade investida em certas partes do sistema nervoso, pela qual o homem e os animais percebem impressões, seja aquelas feitas pelos objetos externos ou produzidas internamente." Nós dizemos, sem embarcar em um esforço de definição pessoal totalmente ilusório e sem nos referirmos, por outro lado, à velha psicologia obsoleta das faculdades da alma (eram três, como todos sabem: inteligência, sensibilidade e vontade) - dizemos que sensibilidade evoca para nós, e evocará no curso do nosso presente estudo, a vida afetiva e suas manifestações (p. 222).

Sobre isso, aguardo a objeção: "Sendo esse o caso, de onde você tira o seu assunto: sensibilidade e história? Vamos escolher um exemplo: na base da vida afetiva e, portanto, da sensibilidade tal como você a define, há emoções. Agora, o que poderia ser mais rigorosamente individual, o que poderia ser mais estritamente pessoal do que uma emoção?” - Olhemos para a objeção. Mas antes deixe-me avisar a meus leitores: em tudo o que se segue, vou me referir ao excelente volume VIII da Encyclopédie française, A vida Mental, onde, pela primeira vez, os cientistas que estão na vanguarda extrema da pesquisa psicológica em nosso país nos deram, com rara e feliz audácia, uma imagem geral do desenvolvimento psíquico do homem observado de um lado a outro de sua trajetória - do dia de sua conceção ao dia de sua morte. E vou me referir, mais particularmente, ao artigo original sobre emoções assinado pelo próprio Dr. Wallon: poucas leituras podem iluminar melhor a lanterna de um historiador em busca de clareza.

Então, pode-se ainda objetar, o que poderia ser mais rigorosamente individual, o que poderia ser mais pessoal do que uma emoção? E ainda mais, o que poderia ser mais estritamente momentâneo? Elas não são um disfarce, ou uma resposta instantânea a certas solicitações externas? E elas não refletem mudanças em nossos órgãos que, por definição, são incomunicáveis? A vida afetiva é, de fato (para usar uma fórmula de Charles Blondel em sua Introduction à la psychologie collective, p. 92) o que há de "mais necessária e inexoravelmente subjetivo em nós". Então, o que a história tem a ver com todo esse personalismo, todo esse individualismo, todo esse subjetivismo psicológico? Pedimos-lhe que analise, em suas causas orgânicas, ataques de medo, raiva, alegria ou angústia de Pedro, o Grande, de Luís XIV ou Napoleão? E quando o historiador nos disser: "Napoleão teve um ataque de raiva" ou "um momento de grande prazer" - sua tarefa não estará terminada? Será que ele será convidado a descer para o mistério fisiológico das vísceras do grande homem?

Tudo isso é muito especulativo. Primeiro porque não devemos confundir: uma emoção é provavelmente algo diferente de uma simples reação automática do organismo às solicitações do mundo exterior. Como sinalização e resposta imediata, não está comprovado que as reações das quais ela é acompanhada, e que a caracterizam, sejam sempre propensas a acelerar, a tornar mais precisos, mais diversos e mais vívidos os gestos do homem preso nas garras da emoção. Pelo contrário (p. 223).

Na verdade, diz muito bem o dr. Wallon, as emoções constituem uma nova fórmula de atividade, que não deve ser confundida com simples automatismos de resposta. E elas se abastecem em outras fontes de vida orgânica: mas isso é de pouca importância para nós, historiadores, que não temos nenhuma habilitação para prospetar essas fontes. O que é muito mais importante é que, ao contrário do que pensamos quando as confundimos com simples automatismos de reação ao mundo exterior - as emoções têm um caráter particular que o homem interessado pela vida social de seus congêneres não pode mais, desta vez, ignorar. Emoções são contagiosas.

Elas envolvem relações de um homem a outro, relações coletivas. Elas nascem, sem dúvida, em um fundo orgânico específico para um determinado indivíduo, e frequentemente por ocasião de um evento que afeta apenas esse indivíduo, ou pelo menos que o afeta com uma gravidade, uma violência particulares. Mas elas se expressam assim; se quisermos, sua expressão é o resultado de uma série de experiências de vida comuns, de reações semelhantes e simultâneas ao choque de situações idênticas e contatos de mesma natureza; é o fruto, se preferirmos, de tal fusão, de tal concentração recíproca de várias sensibilidades - que, muito rapidamente, adquiriram o poder de provocar em todos os presentes, por uma espécie de contágio mimético, o complexo afetivo-motor que corresponde ao evento que ocorreu e foi sentido por um só.

E assim, pouco a pouco, as emoções passaram a constituir, por meio da associação de vários participantes, alternadamente iniciadores e seguidores, um sistema de incentivos interindividuais que se diversificou de acordo com situações e circunstâncias, diversificando ao mesmo tempo as reações e a sensibilidade de cada um. Mais que a harmonia assim estabelecida, que a maior segurança ou poder oferecido ao grupo por tal simultaneidade assim regulada das reações emocionais - sua utilidade logo se viu justificando a constituição de um verdadeiro sistema de emoções. Elas se tornaram como que uma instituição. Elas foram estabelecidas como um ritual. Muitas cerimônias, entre os primitivos, são conjuntos de simulacros cujo propósito óbvio é despertar em todos, pelas mesmas atitudes e pelos mesmos gestos, a mesma emoção - e fundi-los todos em uma espécie de individualidade superior, para prepará-los todos para a mesma ação (p. 224).

Vamos parar aqui. Tudo isso provavelmente não deixará os historiadores indiferentes? Certamente, essas são sociedades que continuamos a chamar de "primitivas", ao mesmo tempo em que continuamos a declarar tal palavra absurda. Digamos, se preferirem, que trata-se de sociedades ainda na sua infância. Mas, finalmente, não vamos ser exigentes. Essas sociedades balbuciantes cobrem mais tempo e espaço, no passado do homem, do que as nossas sociedades tagarelas de hoje. Essas sociedades balbuciantes deixaram em nós muito do seu balbuciar. Porque nada se perde se tudo se transforma. E sobretudo, o que acabamos de dizer de forma breve permite-nos apreender outra coisa, mais séria. O que acabamos de dizer nos permite testemunhar, simplesmente, a gênese da atividade intelectual.

A atividade intelectual pressupõe a vida social. Seus instrumentos indispensáveis (a linguagem em primeiro lugar) implicam, de facto, na existência de um ambiente humano no qual eles necessariamente se desenvolveram - já que seu objetivo é colocar todos os participantes em contato com o mesmo ambiente. Ora, onde encontrar o primeiro terreno conhecido das relações interindividuais de consciência entre os homens senão no que acabamos de descrever e que podemos chamar de vida emocional? O órgão especializado da linguagem, a fala articulada, não temos razões para acreditar que surgiu, que se desenvolveu a partir da mesma fonte das atividades orgânicas, de atividades tônicas como as emoções, quando vemos, ainda hoje, distúrbios das funções tônicas imediatamente levar a distúrbios da fala? - Só que, muito rapidamente, entre as emoções e as representações surgiu um antagonismo. Uma incompatibilidade foi revelada. Porque, por um lado, fomos rápidos em constatar que, assim que ocorrem, as emoções alteram o funcionamento da atividade intelectual. E, por outro lado, também percebemos rapidamente que a melhor maneira de reprimir uma emoção era representar com precisão seus motivos ou objeto - dar-nos o espetáculo dela - ou, simplesmente, engajar-nos em qualquer cálculo, em qualquer meditação. Transformar a dor em um poema ou um romance - isso foi, sem dúvida, para muitos artistas um modo de anestesia sentimental.

E assim pudemos testemunhar nas civilizações em processo de evolução esse longo drama - o recalcamento, mais ou menos lento, da atividade emocional pela atividade intelectual; se, inicialmente, eram as únicas capazes de efetuar a unidade de atitude e consciência entre os indivíduos necessária para que nascessem as trocas intelectuais e seus primeiros instrumentos, elas posteriormente entraram em conflito com esses novos instrumentos de relacionamento cuja criação só elas (p. 225) tornaram possível. E quanto mais as operações intelectuais se desenvolveram em ambientes sociais em que todas as relações entre homens são cada vez mais reguladas por instituições ou técnicas - mais forte tornou-se a tendência de considerar as emoções como uma perturbação da atividade - algo perigoso, indesejável e feio: digamos, no mínimo, indecoroso. O homem honesto não se importa com nada. Se ele se orgulhasse de alguma coisa, seria de sempre manter a calma e nunca trair sua emoção. Mas é verdade que nossas sociedades não têm apenas homens honestos.

Pode-se dizer que tal esquema - cujos elementos, repito, são emprestados do belo artigo de Henri Wallon no Volume VIII da Encyclopédie française - não tem valor para o historiador? Tudo depende do que chamamos de história. No entanto, acho que ele tem algum interesse. E que isso nos permite não só entender, um pouco melhor, a atitude dos homens do passado, mas talvez definir um método de pesquisa, que é o nosso objetivo aqui.

[...]

Mas, por outro lado, este campo do qual afirmamos excluir qualquer imaginação intuitiva, o campo da história das ideias, o campo da história das instituições: que belo campo de pesquisa, reconstituição e interpretação para o historiador psicólogo! Seu campo de investigação por excelência. Porque, bem ao contrário, o mecanismo das instituições de uma era, as ideias desta ou daquela época: é isso que o historiador não consegue entender e fazer com que se entenda sem essa preocupação primordial, que eu chamo de psicológica: a preocupação de conectar, de vincular a todas as condições de existência da sua época o sentido dado às suas ideias pelos homens daquele tempo. Porque essas condições colorem as ideias, como todas as coisas, com uma cor muito clara do tempo e da sociedade. Porque essas condições, elas imprimem sua marca nessas ideias, como nas instituições e no seu jogo. E para o historiador, ideias, instituições, nunca são dadas pelo Eterno; são manifestações históricas do gênio humano em determinado momento e sob a pressão de circunstâncias que nunca mais se repetem (p. 230).

[...]

E agora, para um olhar final, vamos evocar novamente este esboço com o qual comecei - este esboço do papel da atividade emocional na história da humanidade, comparado ao papel da atividade intelectual, que eu rastreei com a ajuda dos dados elaborados pelo Volume VIII da Encyclopédie française. Recordemos essa espécie de curva que nos mostrava, de forma geral, o sistema das atividades emocionais respeitado, mas cada vez mais reprimido pela massa proliferante, pelo sistema invasor das atividades intelectuais: conquistadoras, dominadoras e rejeitando cada vez mais as emoções, à margem, por assim dizer, da periferia, num papel secundário e desprezível (p. 236).

Muito bem. E podemos, a partir daí, se formos um daqueles racionalistas destemperados à moda antiga que todos conhecemos (e que, talvez, ainda possamos conhecer muito facilmente, apenas descendo para nós mesmos em certos momentos) - podemos, a partir daí, cantar um hino triunfal bastante bonito para o Progresso. À razão. À Lógica. Mas querem que tornemos a ler o texto que eu estava usando ainda há pouco?

"E assim, pouco a pouco, as emoções passaram a constituir, por meio da associação de vários participantes, alternadamente iniciadores e seguidores, um sistema de incentivos interindividuais que se diversificou de acordo com situações e circunstâncias, diversificando ao mesmo tempo as reações e a sensibilidade de cada um. Mais que a harmonia assim estabelecida, que a maior segurança ou poder oferecido ao grupo por tal simultaneidade assim regulada das reações emocionais - sua utilidade logo se viu justificando a constituição de um verdadeiro sistema de emoções. Elas se tornaram como que uma instituição. Elas foram estabelecidas como um ritual. Muitas cerimônias, entre os primitivos, são conjuntos de simulacros cujo propósito óbvio é despertar em todos, pelas mesmas atitudes e pelos mesmos gestos, a mesma emoção - e fundi-los todos em uma espécie de individualidade superior, para prepará-los todos para a mesma ação” (...).

Sensibilidade na história, um assunto para amadores ilustres... Rápido, rápido, vamos voltar, não é, para a história real? Para as circunstâncias do caso Pritchard. Para a questão dos Lugares Sagrados. Ou a enumeração dos celeiros de sal em 1563. Isso é história. Que é apropriado ensinar a nossos filhos, nas salas de aula, e a nossos alunos nas universidades. Mas a história (p. 237) do ódio, a história do medo, a história da crueldade, a história do amor: deixe-nos, por favor, com essas literaturas sem graça. - Essas literaturas brandas, estranhas à humanidade, mas que, amanhã, acabarão por fazer do universo uma fedorenta vala comum.

Sim. Aqueles que, no início, talvez se perguntaram "A quê leva toda essa psicologia colocada em resumo?" - acho que podem concluir, agora: leva à história. À mais antiga como à mais recente das histórias. À história de sentimentos primitivos no lugar, in situ, e também à de sentimentos primitivos ressuscitados. Como à nossa história de ressurgimentos perpétuos e ressurreições sentimentais. Culto ao sangue, o sangue vermelho, no que ele tem de mais animal e primitivo. Culto aos poderes elementares refletindo o cansaço das bestas forçadas que somos - bestas esmagadas, desgastadas, enroladas pelo barulho frenético, pelo dinamismo frenético de milhares de máquinas que nos obcecam. Ressurreição compensatória de uma espécie de culto da Mãe Terra em cujo seio é tão bom, à noite, deitar filialmente os membros doloridos. Ressurreição, não menos universal, de uma espécie de culto ao Sol nutritivo e curativo: nudismo e acampamento, deslizamentos perdidos no ar e na água. Exaltação dos sentimentos primários, com rutura súbita de orientação e valência; exaltação da dureza em detrimento do amor, da animalidade em detrimento da cultura - mas de uma dada animalidade, testada como superior à cultura; na verdade, concluo: a sensibilidade na história vale uma investigação, uma investigação ampla, poderosa e coletiva? E a psicologia, é um sonho doentio se eu penso, se eu digo aqui que é a própria base do trabalho de qualquer historiador válido? (p. 238).

1O texto inteiro não é reproduzido aqui, mas apenas alguns extratos. A paginação indicada é a do texto em Combats pour l’histoire (edição de 1992). Este texto foi apresentado em 1938 na Décima Semana Internacional da Síntese, consagrada à Sensibilidade no homem e na natureza.

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