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Laboreal

versão On-line ISSN 1646-5237

Laboreal vol.18 no.2 Porto dez. 2022  Epub 30-Dez-2022

https://doi.org/10.4000/laboreal.19768 

Pesquisa empírica

Vamos escrever sobre o que a gente faz? As vivências coletivas de cuidar da saúde mental dos trabalhadores em uma instituição pública federal durante a pandemia da covid-19

¿Vamos a escribir sobre lo que hacemos? Las experiencias colectivas del cuidado de la salud mental de los trabajadores de una institución pública federal durante la pandemia de COVID-19

Écrivons sur ce que nous faisons ? Les expériences collectives de prise en charge de la santé mentale des travailleurs dans un établissement public fédéral pendant la pandémie de covid-19

Let's write about what do we do? The collective experiences of caring for the mental health of workers in a federal public institution during the covid-19 pandemic

Cecilia Aquino Barbosa1 
http://orcid.org/0000-0001-9924-7326

Denize da Silva Nogueira2 
http://orcid.org/0000-0001-9299-3342

Luciana Bicalho Cavanellas3 
http://orcid.org/0000-0003-0562-6507

Marcello Santos Rezende4 
http://orcid.org/0000-0001-5452-9012

Marta Lana Montenegro5 
http://orcid.org/0000-0003-4346-9418

1Coordenação de Saúde do Trabalhador,Coordenação Geral de Gestão de Pessoas,Fundação Oswaldo Cruz - Av. Brasil, 4365 - Manguinhos, Rio de Janeiro - RJ, Brasil 21040-900. ceciliaquino@gmail.com

2Coordenação de Saúde do Trabalhador,Coordenação Geral de Gestão de Pessoas,Fundação Oswaldo Cruz - Av. Brasil, 4365 - Manguinhos, Rio de Janeiro - RJ, Brasil 21040-900. denize.nogueira@gmail.com

3Coordenação de Saúde do Trabalhador,Coordenação Geral de Gestão de Pessoas,Fundação Oswaldo Cruz - Av. Brasil, 4365 - Manguinhos, Rio de Janeiro - RJ, Brasil 21040-900. lucianabcavanellas@gmail.com

4Coordenação de Saúde do Trabalhador,Coordenação Geral de Gestão de Pessoas,Fundação Oswaldo Cruz - Av. Brasil, 4365 - Manguinhos, Rio de Janeiro - RJ, Brasil 21040-900. marcellosantosr@gmail.com

5Coordenação de Saúde do Trabalhador,Coordenação Geral de Gestão de Pessoas,Fundação Oswaldo Cruz - Av. Brasil, 4365 - Manguinhos, Rio de Janeiro - RJ, Brasil 21040-900. marta.jogaib@fiocruz.br


Resumo

Em março de 2020 foi declarada no Brasil uma situação de emergência sanitária devido à pandemia da covid-19. Isso trouxe grandes mudanças para o cotidiano de trabalho, tornando-se necessária a adoção de escalas presenciais associadas ao trabalho remoto, contribuindo para a diminuição da circulação de pessoas com o objetivo de desacelerar a propagação do vírus. A saúde mental assumiu um lugar de destaque, revelando-se como uma grande preocupação social, o que conduziu ao aumento das responsabilidades e expectativas com relação à atuação da equipe de psicólogos da coordenação de saúde do trabalhador em uma instituição pública federal de referência em saúde. O objetivo do artigo é produzir um diálogo entre a experiência de trabalho dessa equipe e conceitos oferecidos pela perspectiva ergológica e pela Psicodinâmica do Trabalho, buscando ampliar tanto a compreensão dos conceitos como da própria experiência de cuidado em saúde mental no contexto da emergência sanitária da covid-19.

Palavras-chave: Serviço Público Federal; pandemia da covid-19; Ergologia; Psicodinâmica do Trabalho; saúde mental e trabalho

Resumen

En marzo de 2020, se declaró una emergencia sanitaria en Brasil debido a la pandemia de COVID-19. Esto ha traído cambios importantes en el trabajo diario, haciendo necesaria la adopción de escalas presenciales asociadas al trabajo remoto, contribuyendo a la reducción de la circulación de personas con el objetivo de frenar la propagación del virus. La salud mental asumió un lugar destacado, revelándose como una gran preocupación social, lo que llevó al aumento de responsabilidades y expectativas en cuanto al desempeño del equipo de psicólogos en la coordinación de la salud del trabajador en una institución pública federal de referencia en salud. El objetivo del artículo es producir un diálogo entre la experiencia de trabajo de este equipo y los conceptos ofrecidos por la perspectiva ergológica y por la Psicodinámica del trabajo, buscando ampliar tanto la comprensión de los conceptos como la experiencia del cuidado de la salud mental en el contexto de la emergencia sanitaria de COVID-19.

Palabras clave: Servicio Público Federal; pandemia de COVID-19; Ergología; Psicodinámica del trabajo; salud mental y trabajo

Résumé

En mars 2020, une situation d'urgence sanitaire a été déclarée au Brésil en raison de la pandémie de covid-19. De grands changements dans le travail quotidien en ont résulté, rendant nécessaire l'adoption d'échelles de face à face associées au travail à distance, contribuant à la réduction de la circulation des personnes et au ralentissement de la propagation du virus. La santé mentale a pris une place prépondérante, devenant une préoccupation sociale majeure. Des responsabilités et des attentes accrues en ont dérivé pour l'équipe de psychologues intégrée au sein de la coordination de la santé des travailleurs d’une institution fédérale de référence en matière de santé publique. L'objectif de l'article est d’engendrer un dialogue entre l'expérience de travail de cette équipe et les concepts offerts par la perspective ergologique et la Psychodynamique du travail, en cherchant à élargir, à la fois, la compréhension des concepts et l'expérience elle-même des soins de santé mentale dans le contexte de l'urgence sanitaire du covid-19.

Mots-clés: Service Public Fédéral; pandémie covid-19; Ergologie; Psychodynamique du travail; santé mentale et travail

Abstract

In March 2020, a health emergency was declared in Brazil due to the covid-19 pandemic. This has brought major changes to daily work, making it necessary to adopt duty rosters to combine on-site and remote work, contributing to the decrease in the movement of people with the aim of slowing the spread of the virus. Mental health assumed a prominent place, emerging as a major social concern, which led to an increase in responsibilities and expectations regarding the performance of the team of psychologists in the coordination of worker's health in a noteworthy federal public health institution. The objective of the article is to produce a dialogue between the work experience of this team and concepts offered by the ergological perspective and by the Psychodynamics of work, seeking to broaden both the understanding of the concepts and the experience of mental health care in the context of the covid-19 health emergency.

Keywords: Federal Public Service; covid-19 pandemic; Ergology; Psychodynamics of work; mental health and work

1. Introdução

Trazer o relato desse vivido torna-se uma oportunidade de rever e pensar o processo de criação, de desenvolvimento e expansão de um trabalho coletivo, fundamentado em princípios teóricos e concretizado nos encontros sinérgicos do cotidiano.

A instituição em questão conta com mais de onze mil trabalhadores, entre servidores, terceirizados e bolsistas, e possui unidades descentralizadas em diferentes regiões e estados do Brasil. Suas unidades - mais de vinte - atuam em áreas relacionadas a ensino, pesquisa, assistência e gestão. A governança institucional é composta, entre outros elementos, por direções de unidades finalísticas autônomas, unidades administrativas cujos processos atravessam e impactam as unidades finalísticas (e vice-versa), uma presidência institucional eleita pelos servidores, um conselho deliberativo (CD) formado pelas direções das unidades finalísticas e coordenações das administrativas e, ainda, um congresso interno, que se reúne a cada quatro anos para discutir e definir o planejamento estratégico da instituição, sendo composto por servidores eleitos para representar suas unidades. Neste universo de trabalho onde opera tamanha estrutura de governança, a instituição abarca processos de trabalho e modos de gestão absolutamente distintos, que precisaram ser reorganizados rapidamente para responder à emergência sanitária.

A responsabilidade pelo cuidado em saúde mental desses trabalhadores, incluindo mais de mil profissionais contratados em função da pandemia, trouxe novos desafios e instigou a capacidade de renormatizações em contexto de emergência. A articulação de espaços públicos de discussão - da equipe de psicólogos que atuam na Coordenação de Saúde do Trabalhador (CST) com outras equipes de cuidado das diferentes unidades da instituição - foi uma estratégia precisa para o fortalecimento coletivo das ações em saúde mental e trabalho. Esses espaços evidenciaram a importância da formação de relações de confiança e cooperação no trabalho, construídas ao longo dos últimos anos e que, na pandemia, se mostraram potentes para o enfrentamento das demandas e elaboração de proposições eficazes.

O percurso e a atuação institucional dessa equipe de trabalho, baseada no campo da Saúde do Trabalhador (ST) e norteada pelas Clínicas do Trabalho, será objeto dessa reflexão. Buscaremos apresentar como, partindo-se de uma formação acadêmica comum ao grupo de psicólogos, foi sendo construída certa compreensão sobre saúde mental e trabalho, gerando um patrimônio compartilhado e permitindo que, durante a pandemia da covid-19, fosse possível agir e ampliar as estratégias de cuidado para os trabalhadores e seus familiares, ultrapassando as barreiras concretas de um espaço físico. Importante destacar que tal feito se deu, mesmo diante da necessidade do trabalho remoto e levando-se em conta as diversas temporalidades, condições e recursos de cada integrante da equipe de saúde mental e da instituição como um todo.

Ao buscar elaborar essa reflexão no contexto da pandemia da covid-19, é possível acenar para um alargamento das possibilidades de atuação profissional/individual e institucional de promoção e cuidado da saúde mental dos trabalhadores.

2. A construção de um coletivo de trabalho: uma breve retrospectiva

Contar uma história é não só rever os fatos ocorridos numa certa linha do tempo, mas criar a oportunidade de refazer uma trajetória a partir de um certo ponto, recompondo momentos, encontros e nuances, que envolvem pessoas e suas percepções das situações.

O que pretendemos aqui é contar nossa própria história, vivenciada ao longo dos últimos nove anos, por nós, membros da equipe de Saúde Mental e Trabalho da Coordenação de Saúde do Trabalhador de uma instituição pública federal.

Para demarcar o início, escolhemos o concurso público de 2010, quando foi aberta a vaga para psicólogo da CST. Em 2013 o psicólogo concursado tomou posse, iniciando sua atuação no Núcleo de Saúde do Trabalhador (Nust/CST), atendendo trabalhadores com as mais diferentes demandas, mas buscando instituir em sua prática o olhar da psicologia do trabalho, baseado em sua formação de mestrado e doutorado em Saúde do Trabalhador e Psicologia Social.

Isso significava acolher o sofrimento/adoecimento do trabalhador que buscava o serviço, porém esclarecendo que este não pretendia ser um espaço de psicoterapia e sim de possibilidades de escuta, encaminhamentos e acompanhamento de situações relacionadas ao trabalho. Esse processo contava com a participação de duas assistentes sociais, que eram responsáveis pelos casos de acidente de trabalho, além do diálogo constante com a equipe médica, que recebia os trabalhadores no pronto atendimento, muitas vezes encaminhando-os posteriormente ao setor de psicologia, quando necessário.

Trazer para o centro da discussão os processos e condições de trabalho foi um desafio importante, especialmente por se tratar de um espaço visto pelos trabalhadores como uma espécie de posto de saúde e pronto atendimento. Difícil ampliar a compreensão de que o psicólogo ali tinha outra função. Podemos dizer que essa foi uma etapa importante no estabelecimento de alguns alicerces daquilo que viria a se tornar o trabalho da equipe de Saúde Mental e Trabalho tempos depois. Tratava-se de delimitar um campo de atuação, com uma linguagem e conhecimento próprios e torná-lo acessível a trabalhadores e colegas, numa espécie de ação pedagógica intensa, paralela à atuação psicológica assistencial.

Por se tratar de uma coordenação localizada na Diretoria de Recursos Humanos (Direh), unidade ligada à gestão central da instituição, não era incomum surgirem demandas, de chefias ou de colegas dos setores de recursos humanos, referentes a dificuldades no âmbito do desempenho de determinado trabalhador, conflitos em equipes ou questões relativas a licenças, afastamentos recorrentes e mesmo situações de trabalhadores que deixavam de comparecer ao trabalho por longos períodos por motivos relacionados à saúde mental. Parte dessas demandas necessitava de uma ação mais abrangente, que envolvesse discussões sobre os processos de trabalho, visita aos locais e aproximação com as equipes em suas unidades, de acordo com os princípios do campo da Saúde do Trabalhador. Mas havia somente um psicólogo, ainda recém-chegado numa instituição complexa, para fazer frente a esse cenário.

Em 2014, a CST recebe outra psicóloga, recém-saída do doutorado também na área de Saúde do Trabalhador, que havia atuado alguns anos na Direh. Considerando sua formação e o desejo de atuar na área, solicitou sua alocação na CST e passou a compor a assessoria da coordenação, trazendo um olhar diferenciado nas situações envolvendo a gestão do trabalho e saúde mental. Pela experiência institucional e clínica e pela formação compartilhada com o colega que já vinha atuando no Nust, logo se aproximaram e iniciaram uma nova forma de tentar responder às demandas das unidades e dos gestores. Coincidentemente, alguns anos antes, haviam participado de uma disciplina de psicologia do trabalho na pós-graduação em Psicologia Social da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e já sabiam do solo fértil de conhecimento comum, das clínicas do trabalho, para plantarem outra forma de trabalharem institucionalmente.

Ainda naquele ano, a partir de um pedido da diretora de uma das unidades, que demandou uma intervenção por estar preocupada com o adoecimento dos trabalhadores, surgiu a oportunidade de colocar em marcha um outro tipo de atuação, diferente dos atendimentos individuais até então realizados no setor de psicologia. Depois de algumas conversas com a gestora da coordenação, os psicólogos convidaram colegas dos setores de ergonomia, serviço social, médicos e de análise da informação da CST, e criaram uma equipe para iniciarem o que vieram a chamar de “Conversas sobre o Trabalho”, inspirados na perpectiva ergológica (Schwartz, 2000).

A proposta era de, após ouvirem a demanda da direção da unidade, reunirem informações que já possuíam sobre trabalho naquele local, em função de uma série de abordagens realizadas pela CST na referida unidade, em anos anteriores, e debruçarem-se sobre esses dados. Na sequência, apresentariam aos trabalhadores a ideia dos encontros.

A proposta, criada nesse coletivo de profissionais da saúde do trabalhador, em que pesem suas diferentes formações e olhares, foi levada aos trabalhadores da unidade solicitante para discussão, sugestões e pactuação de como funcionariam os encontros voltados à discussão sobre seus processos de trabalho. As bases teórico-metodológicas utilizadas foram inspiradas na Psicodinâmica do Trabalho, na Ergologia e no Movimento Operário Italiano. Sempre com a condição de participação voluntária dos trabalhadores, foi dado início à primeira de uma série de “Conversas sobre o Trabalho”, realizadas posteriormente nas diversas unidades da instituição.

Em 2016, outra psicóloga que trabalhava no serviço de gestão de carreiras da Direh, tendo tomado conhecimento de alguns desses trabalhos realizados na CST, pediu sua transferência, interessada em conhecer e inserir-se em um movimento que parecia conseguir tocar o trabalho de uma forma mais próxima, com vistas a transformá-lo. Inicialmente, também ingressou como assessora da coordenação, mas logo veio a integrar os grupos de “Conversas sobre o Trabalho”, que passaram a ser constantemente demandados por chefias de equipes e áreas de recursos humanos de diferentes unidades.

Ainda em 2016, essa profissional iniciou o mestrado na área de Saúde do Trabalhador, buscando conhecer as bases teóricas e metodológicas do campo em que começara a atuar. Estudou o tema da avaliação de desempenho à luz dos conceitos da Psicodinâmica do Trabalho, ouvindo e analisando a visão e experiências dos trabalhadores da Instituição.

No mesmo ano, essa pequena equipe agora composta por três psicólogos inaugurou um espaço de formação e troca de experiências com os diferentes setores de Recursos Humanos (RH), cerca de vinte, correspondentes às unidades da Instituição. Chamados “Diálogos em Saúde Mental e Trabalho”, os encontros aconteciam mensalmente, discutindo temas da gestão do trabalho na perspectiva da saúde do trabalhador, tais como assédio moral, avaliação de desempenho, conflitos nas relações de trabalho, qualidade de vida no trabalho, sofrimento no trabalho, suicídio, dentre outros. A equipe teve que desconstruir algumas visões arraigadas institucionalmente em relação à psicologia organizacional e clínica, buscando ampliar e incluir temas caros à Saúde do Trabalhador.

Foram quatro anos de diálogos permanentes com os profissionais de RH, construindo um chão comum, onde pudéssemos pisar com mais firmeza e tranquilidade por estarmos usando uma mesma linguagem e olhando para os fenômenos a partir de pontos de vista mais próximos. A ideia é que eles tivessem mais conhecimento sobre nosso trabalho, já que eram interlocutores fundamentais no acesso e acolhimento aos trabalhadores. Nosso objetivo era constituir parcerias, que foram consolidadas ao longo do tempo e que se tornaram ainda mais relevantes durante a pandemia, como abordaremos de forma mais detalhada a seguir.

Em 2017, tivemos a oportunidade de contratar, via seleção pública, mais uma psicóloga, dessa vez para atuar no Nust, junto ao colega psicólogo que, para além das “Conversas” e dos “Diálogos”, iria acolher os trabalhadores, em atendimentos individuais, cada vez mais solicitados. Ela acabara de iniciar o doutorado e veio integrar nossa equipe, recebendo trabalhadores no Nust/CST e co-criando respostas às solicitações institucionais. Já conhecíamos essa profissional através das discussões que participávamos nos encontros do grupo de Pesquisa e Intervenção em Atividade de Trabalho, Saúde e Relações de Gênero (Pistas)1 do Centro de Estudos da Saúde do Trabalhador e Ecologia Humana (Cesteh) da Escola Nacional de Saúde Pública Sérgio Arouca (Ensp). Nestes encontros tínhamos a oportunidade de refletirmos sobre situações de trabalho juntos com professores e pesquisadores de referência no campo da Saúde do Trabalhador.

Paralelamente, questões envolvendo a saúde mental dos trabalhadores só cresciam, incluindo duas situações de suicídio (em 2015 e 2016), sendo uma delas no horário e local de trabalho, gerando grande mobilização institucional. A equipe de psicólogos foi imediatamente acionada e novas demandas de discussões e suporte acrescentadas. Foram realizados encontros de apoio aos colegas dos setores e, nessas duas situações, verificamos que o desfecho trágico não tinha relação direta com o ambiente laboral.

O “setembro amarelo” de prevenção ao suicídio passou a compor a agenda anual de trabalho da equipe, assim como seminários voltados para a Saúde Mental e Trabalho, com uma perspectiva mais abrangente, em eventos abertos a todos os trabalhadores da instituição, incluindo aqueles das unidades fora do município do Rio de Janeiro.

O agravamento das situações de sofrimento, aliado ao amadurecimento e reconhecimento do trabalho realizado pela equipe de psicólogos da CST tornou necessária uma nova contratação. Após seleção que contou com vários candidatos especializados em Saúde do Trabalhador, incluindo alguns doutores, a escolha foi unânime, o que pareceu refletir não só o preparo técnico e teórico de nossa atual colega, mas uma afinidade importante de pensamento e perspectiva construída entre nós acerca de nosso trabalho.

A nova integrante da equipe chegou em 2019 e rapidamente se inseriu nas atividades. Tínhamos agora três psicólogos no Nust (onde se concentravam os atendimentos individuais) e duas na assessoria da CST, formando não só um grupo de trabalho, ou um “time”, mas um pequeno coletivo de cinco membros profundamente alinhados em seus objetivos, bases teóricas e metodológicas. Apesar das diferentes experiências e histórias de vida, constituintes de patrimônios pessoais também diversos, costumamos brincar que houve ali uma “conjunção astral”, ou um alinhamento dos astros para justificar tamanha sinergia entre nós.

Quando fomos surpreendidos em 2020 pela pandemia da covid-19, já funcionávamos com muita cumplicidade, conseguindo estabelecer prioridades de atuação e divisão de trabalho sem dificuldades, apesar da sempre crescente demanda. Mas entendemos que, diante da eclosão de casos de covid-19 e situações difíceis impostas aos trabalhadores, precisaríamos de ajuda para oferecer suporte a tantos profissionais.

3. Um patrimônio comum

No encontro destas quatro psicólogas e um psicólogo, reunidos em torno de uma proposta de atuação em Saúde Mental e Trabalho, tornou-se cada vez mais evidente, com o tempo, a importância da formação em comum como um elo entre nós. Apesar de sempre percebida como importante para os encaminhamentos nas intervenções das situações de trabalho vivenciados no cotidiano de nossa atividade, a sutileza daquilo que compõe o modo de trabalhar desta equipe foi ganhando contorno e destaque aos nossos próprios olhos, a ponto de nos propormos aqui a compartilhar as reflexões sobre esta experiência. Isto porque, entendemos que aquilo que nos une nos modos de trabalhar está espelhado, simultaneamente, em nosso objeto de interesse, estudo e trabalho. Ou seja, determinado arcabouço de conhecimentos disciplinares sobre saúde mental e trabalho e, ainda, uma base de valores comuns que configura pano de fundo e “liga” da prática cotidiana que construímos a partir destes saberes formais, guardados o estilo e a singularidade de cada membro da equipe. A compreensão das relações entre saúde mental e trabalho a partir da perspectiva que nos orienta é muito vasta e engloba muitos conceitos e debates teóricos, mas consideramos pertinente apontar alguns que têm funcionado como um fio condutor na nossa prática.

Apresentaremos brevemente, então, alguns dos conceitos fundamentais que compõem para nós aquilo que Schwartz denomina patrimônio (di Fanti & Barbosa, 2016), ou seja, algo da ordem dos saberes e valores que foram construídos e desenvolvidos ao longo do tempo, coletivamente, sobre saúde mental e trabalho e que norteiam a construção de nossas ações.

Um desses princípios que nos orientam diz respeito à descoberta da Ergonomia da atividade, reafirmada e ampliada pela Ergologia, sobre a lacuna entre o prescrito e o real sempre presente em todas as situações de trabalho.

É nessa lacuna que a atividade de trabalho acontece. Na direção de realizar o que nos foi confiado e manter a própria saúde, todos nós escolhemos um caminho dentre muitos possíveis. As dramáticas gestionárias (Schwartz, 2004) buscam fazer valer algumas normas do que se acredita que seja viver a vida e viver a vida no trabalho. Há, portanto, um intenso debate de normas num mundo de valores presentes na ação laboral (Schwartz, 2010a). Isto significa que, independente da situação que chegue até nós, o trabalhador nunca é visto como passivo ao que lhe acontece. Como afirma (Schwartz, 2010a), mesmo que no infinitesimal o trabalhador sempre irá tentar recriar o meio a partir das normas que ele acredita que valham a pena. Portanto, consideramos seu protagonismo, buscando uma posição diferente daquela ocupada por especialistas que se colocam como detentores da solução sobre o viver/ trabalhar do outro. Entendemos que nosso papel se aproxima do lugar de facilitadores, que ao ouvirem os trabalhadores podem, junto com eles, auxiliá-los num processo de compreensão e transformação do próprio trabalho, como no caso das Conversas sobre o Trabalho.

Outro aspecto relevante de nossa perspectiva teórica e prática diz respeito ao olhar não individualizado para questões relacionadas à saúde mental no trabalho. Entendemos que é preciso considerar em nossa escuta, mesmo em atendimentos individuais, possíveis demandas relacionadas a sofrimentos que guardam em si questões da organização do trabalho que precisam ser consideradas e, de acordo com a circunstância e pactuação com o trabalhador, colocadas em debate junto ao seu coletivo.

Nos é cara, ainda, a noção de que o trabalho nunca é neutro em relação à saúde. Conforme sinalizado por( Dejours 2004), ao investigar a dinâmica dos processos e conflitos intersubjetivos que se dão no trabalho, ele irá produzir sofrimento/adoecimento ou irá ampliar a saúde. Cabe explicitar que tomamos o conceito de saúde em consonância com a perspectiva trazida por (Canguilhem 1966/2002) e adotada, também pela Psicodinâmica do Trabalho (PdT) e pela Ergologia, ou seja, entendemos a saúde como um movimento dinâmico que envolve as capacidades e possibilidades de reação e, especialmente, produção de novas normas e modos de vida.

Diante das variabilidades e acasos inerentes às situações concretas vividas pelos trabalhadores, eles precisam criar novas formas (individuais e coletivas) de lidar com o trabalho, nas novas condições que passam a se apresentar. A normatividade, este movimento de criação, é fundamental, portanto, para a saúde dos trabalhadores. Vale ressaltar que estes movimentos, do trabalhar e da simultânea busca por saúde, envolvem grande mobilização subjetiva, de modo que o sofrimento psíquico pode caminhar em diferentes direções, seja do sofrimento/adoecimento, seja o da saúde/criatividade, como aponta o arcabouço teórico da PdT (Souza, Brito, & Athayde, 2018).

Ao mencionar modos e ferramentas de gestão que tendem à individualização do olhar sobre o trabalho, (Dejours 2004) sinaliza que estas denominadas “novas formas de organização do trabalho” conduzem não somente à concorrência entre pares, mas, também, ao esfacelamento das solidariedades entre os trabalhadores. Este cenário contribui sobremaneira para a “erosão do lugar acordado à subjetividade e à vida no trabalho”, trazendo rebatimentos para a saúde mental dos trabalhadores como o aumento de formas de violência nos ambientes laborais, assédio moral, crescimento e surgimento de novas patologias mentais (p. 34). Uma vez alinhados a esta perspectiva, buscamos considerar esse importante aspecto em nossas análises e construção de encaminhamentos, evitando uma compreensão individualizada das demandas trazidas à nossa equipe, ainda que colocadas por um trabalhador que busca acolhimento e cuidado individual.

Essas são algumas das referências teóricas que têm nos ajudado a pensar as situações de trabalho que chegam até nós, e têm nos permitido construir e sustentar uma rede interna e não visível entre os membros da equipe, de modo que nossas decisões e escolhas são permeadas por esse patrimônio comum que nos habita. Nosso trabalho também é vivo e envolve as nossas dramáticas gestionárias em situações institucionais bastante complexas.

Acreditamos que o exercício de refletir e escrever sobre ele amplia nossa própria compreensão sobre aspectos relevantes de novas experiências que se colocaram para a equipe e contribui para o debate sobre Saúde Mental e Trabalho junto aos pares de dentro e de fora da instituição.

4. Diálogos e encontros sobre o trabalho: ampliação da rede de cuidado

Partindo de um patrimônio comum que propõe a desindividualização do olhar sobre o trabalho - colocando os processos e a atividade no centro das questões que envolvem a saúde dos trabalhadores - e a participação efetiva dos trabalhadores nas análises e construção de transformações do próprio trabalho, temos buscado ampliar os espaços de discussão sobre saúde mental e trabalho. As situações que acompanhamos na instituição exigem de nós a convocação de diferentes atores institucionais para que os possíveis encaminhamentos possam ser efetivos. Nesse contexto, tem se destacado a tecitura de uma rede de parceria com os Serviços de Gestão do Trabalho e Núcleos de Saúde do Trabalhador, bem como as experiências coletivas junto a trabalhadores de diferentes unidades.

São estas experiências que vêm sendo chamadas por nós de Conversas sobre o Trabalho. Da sua primeira edição, em 2014, ao momento atual, o método envolve uma etapa inicial de escuta e discussão da demanda; o levantamento de informações no setor - por exemplo, quando já existem informações prévias em função de outras atividades que a ST tenha realizado previamente; a apresentação da proposta das Conversas sobre o Trabalho e dos nossos pressupostos a todos os trabalhadores do setor e a pactuação dos encontros com a equipe, ressaltando sempre que a participação dos trabalhadores deve ser voluntária.

Após esta etapa passamos à discussão e análise conjunta do trabalho naquele setor, partindo tanto da demanda formulada quanto da percepção que os trabalhadores têm acerca das relações entre saúde e trabalho em seu cotidiano. No debate que se segue a este convite à fala, procuramos constituir um grupo com estes trabalhadores, identificando em conjunto os principais temas que emergem nas discussões, construindo propostas de encaminhamentos possíveis para as dificuldades abordadas e destacando as forças criativas e recursos do próprio coletivo para lidar com o trabalhar. Observamos que, ao falar da atividade, no bojo das situações de impasse e sofrimento, também é possível perceber tais movimentos criativos de renormatizações e brechas para a produção de saúde.

Por fim, os debates culminam com a construção de um painel de questões e encaminhamentos, agrupados por temas, que têm como função registrar a análise realizada pelo coletivo, pactuar entre os trabalhadores do setor a realização de, ao menos, algumas transformações validadas por eles próprios e, finalmente, fomentar a discussão com a gestão da área sobre as questões e necessidades dos trabalhadores para a evolução da organização do trabalho e produção de saúde.

Os desafios enfrentados ao adotarmos esta estratégia de ação são inúmeros. Abrangem aspectos que vão da própria natureza de alguns processos de trabalho, que dificulta a reunião simultânea de toda a equipe (como acontece, por exemplo, nos centros de tratamento intensivo de hospitais); passando por problemas de infraestrutura, que resultam em dificuldades em relação ao local dos encontros. Estes desafios nos levam a algumas indagações: Após a finalização dos encontros de cada versão das Conversas sobre o Trabalho, como as equipes podem sustentar as transformações pensadas e sugeridas por seus próprios membros? Como fortalecer efetivamente os espaços de discussão e deliberação sobre o trabalho nas equipes, para que permaneçam ao término dos encontros? Como multiplicar esta experiência na instituição?

A despeito das inquietações que nos confrontam, ancorados em um patrimônio comum, seguimos apostando nos dispositivos coletivos como abordagem fundamental para o cuidado e construção de conhecimentos no campo da Saúde Mental e Trabalho.

Também no âmbito das estratégias coletivas de ação, no ano de 2016, aconteceu o primeiro ciclo de encontros Diálogos em Saúde Mental e Trabalho, contando com a participação de profissionais que atuavam nos Serviços de Gestão do Trabalho e Núcleos de Saúde do Trabalhador da instituição. Naquele ano, também participaram do encontro, representantes de outros órgãos públicos, do sindicato, além de psicólogos e do psiquiatra do plano de saúde que atende os trabalhadores da instituição. Neste primeiro ciclo, convidamos, ainda, professores e outros especialistas para participar do debate, trazendo especialmente, seus saberes disciplinares.

Para além dos pressupostos teóricos que nos norteiam, a estratégia de reunir estes diferentes atores teve como motivação a já crescente demanda institucional por respostas da equipe a questões percebidas como “de saúde mental dos trabalhadores”. A demanda partia tanto dos próprios trabalhadores, que buscavam acolhimento individual para lidar com o próprio sofrimento, quanto de chefes de equipes ou Serviços de Gestão do Trabalho, que ansiavam por respostas a situações de conflitos, desempenho, adoecimentos, ausências e outras situações lidas por eles como passíveis de intervenção dos psicólogos. Neste contexto, os encontros tiveram a finalidade de discutir perspectivas teóricas (nossas e dos participantes), experiências e saberes que emergiam das diferentes práticas, desafios e propostas para a atuação na instituição. Os encontros foram marcados, assim, por um caráter de formação continuada.

(Schwartz 2000) aponta que a comunicação entre as diversas disciplinas (e, consequentemente, entre saberes) somente é possível a partir do momento em que somos convocados, demandados, interpelados pelos patrimônios do trabalho. Tal comunicação requer rearticulação sobre os próprios patrimônios de cada trabalhador. Ao emergir deste encontro de saberes, o conceito de atividade interroga novamente, de outra perspectiva, as disciplinas. Então, vimos também nesta estratégia de ação, entrar em movimento o que (Schwartz 2000) denomina dispositivo dinâmico de três polos. O primeiro polo é constituído pelas disciplinas existentes, correspondendo aos saberes técnico-científicos trazidos por nós especialistas do campo da ST. O segundo polo corresponde aos saberes da experiência dos/as trabalhadores/as, que confrontam o conhecimento dos especialistas. O terceiro polo diz respeito a certo posicionamento ético e epistemológico de reconhecimento da “incultura” de polo sobre o outro. Trata-se de um posicionamento que nos faz ver e abordar o outro como um semelhante, como “alguém com quem vamos aprender coisas sobre o que ele faz, como alguém de quem não pressupomos saber o que ele faz e porque faz, quais são seus valores e como eles têm sido "(re)tratados”, exatamente como afirma (Schwartz 2000, p. 44).

Reunir os diversos atores participantes dos Diálogos em Saúde Mental e Trabalho e colocar em debate o ponto de vista da atividade, o sofrimento psíquico no trabalho, seus possíveis destinos em direção à produção de saúde ou ao adoecimento e suas relações com os modos de organizar o trabalho, foi e vem se mostrando uma estratégia potente para a ampliação da possibilidade de espaços de discussão da ação laboral para além de nossa equipe, construção de confiança e cooperação entre nós e os Serviços de Gestão do Trabalho (SGTs), incluindo outros Núcleos de ST, para compartilhar os fazeres e pactuar caminhos.

5. A reestruturação do serviço na pandemia de covid-19

Com a pandemia da covid-19 e a consequente declaração de situação de emergência sanitária no Brasil, tivemos que adaptar, de forma abrupta, a oferta de cuidado aos trabalhadores. Ao mesmo tempo, enquanto equipe, precisávamos reinventar a nossa configuração de trabalho, visto que a partir daquele momento precisaríamos nos organizar em escalas que alternavam dias de trabalho presencial e remoto. Em grande parte do tempo, somente um/uma profissional estava em trabalho presencial por dia. Isso alterou nossas trocas diárias para debater e pensar os encaminhamentos como costumávamos fazer e nos vimos diante de um triplo desafio: reestruturar o serviço de cuidado em saúde mental, lidar com o distanciamento social da equipe que nos era imposto e enfrentar todos os medos que o vírus causava.

Com os espaços vazios na sala em função da escala de rodízio dos colegas de equipe, as tecnologias da informação, especialmente plataformas digitais de reuniões, invadiram o cotidiano. Passamos a receber inúmeros convites das diferentes unidades para participarmos de lives e rodas de conversa sobre Saúde Mental e Trabalho no contexto da emergência sanitária. Antigos e conhecidos recursos como chamadas telefônicas, antes menos requisitados, ganharam maior destaque em nosso cotidiano de trabalho.

Muito rapidamente buscamos intensificar nossa comunicação pelos meios digitais e falávamos não somente de trabalho, mas buscávamos cuidar uns dos outros diante daquele período tão intenso e singular que todos estávamos vivendo. Consideramos que nesse momento, nosso patrimônio comum se constituiu como uma importante estratégia para a rápida reestruturação do serviço. Percebíamos que a linguagem utilizada e a forma como nos comunicávamos era facilitada por esse compartilhamento de saberes acerca da saúde mental e trabalho. Nos sentíamos à vontade para ligar ou mandar mensagens uns para os outros, compartilhar dúvidas sobre como conduzir as demandas, sofrimentos e anseios que nos chegavam naquele contexto tão inédito para todos. Nesse percurso buscávamos também nos acolher e nos solidarizar uns com os outros.

Além disso, compartilhamos da compreensão apontada tanto pela Psicodinâmica do Trabalho como pela perspectiva ergológica, de que trabalhar não envolve somente produzir, mas também o viver junto (Dejours, 2012). Partilha-se saberes, mas também valores, dentre eles os valores do bem comum (Schwartz, 2010a). Novamente, buscávamos reconstruir o nosso espaço público de discussão, formando as bases para nossa cooperação; tornando o trabalho efetivo possível, além de garantir a construção das bases de um viver junto no trabalho.

Podemos pensar também o quanto nesse novo contexto nossa própria equipe se reconstituía como uma entidade coletiva relativamente pertinente (ECRP), visto que nesse momento nos víamos distantes fisicamente, mas nos mantínhamos conectados a partir de um certo número de preocupações comuns. As ECRP’s são coletivos de geometria variável e invisível que não se assentam em um coletivo pré-definido, “suas fronteiras são as da atividade num dado momento” (Schwartz, 2010b, p. 151) e englobam pessoas que se conhecem, mas pertencem a serviços diferentes. Segundo (Schwartz, 2010b), essas entidades são consideradas coletivas tendo em vista que aí transitam informações pelas vias mais diversas (notas escritas, chamadas telefônicas, deslocamentos, enfim, o que é fundamental para compreender a qualidade de realização de um certo número de tarefas solicitadas).

Nos Diálogos em Saúde Mental e Trabalho, os temas e debates foram direcionados para assuntos referentes à pandemia, sendo este direcionamento uma demanda convergente: tanto de nossa equipe, quanto dos demais participantes. O público-alvo destes encontros, antes formado principalmente por trabalhadores dos Serviços de Gestão do Trabalho e Núcleos de Saúde do Trabalhador, foi reconfigurado, a fim de compartilhar experiências com psicólogos e assistentes sociais lotados em diferentes áreas da instituição, que estivessem lidando com os impactos da covid-19 sofridos pelos trabalhadores. Naquele momento, buscávamos conhecer os caminhos que estes trabalhadores trilhavam para realizar suas atividades e promover o apoio mútuo entre tais profissionais, de modo a fortalecer as práticas voltadas à saúde mental e trabalho no contexto de enfrentamento da pandemia. Os cenários locais, ou seja, de cada unidade e seus ambientes de trabalho, foram amplamente discutidos, bem como os desafios enfrentados e as propostas de atuação em construção e andamento. Laços de cooperação foram fortalecidos ou criados a partir destes encontros, e mantidos para além deles. Arriscamos, então, afirmar, que os trabalhadores que compõem os Diálogos, mesmo com a reconfiguração de seu público-alvo naqueles primeiros momentos da emergência sanitária, vêm, também, se configurando connosco em uma ECRP.

Paralelamente, ainda em março de 2020, após uma reunião com a coordenação da CST, a percepção da gravidade da situação, tendo em vista o cenário epidemiológico dos outros países e o seu impacto na saúde mental dos chamados trabalhadores da “linha de frente”, entendemos que teríamos que nos aproximar dos profissionais do hospital de referência em infectologia (uma das unidades da instituição) e criar modos de cuidar desses profissionais que estariam lidando diretamente com pacientes infectados pelo novo coronavírus.

Nessa época, começaram a surgir no país e no município do Rio de Janeiro inúmeras frentes de ajuda psicológica, onde psicólogos se voluntariavam para realizar um atendimento pontual, principalmente a médicos e enfermeiros. Sabíamos que o número de pedidos de atendimento na instituição deveria crescer numa proporção grande e seria difícil acompanhar sistematicamente todas as solicitações. Diante disso, decidimos criar nossa própria Rede de Apoio, convidando colegas, de nosso conhecimento e confiança, para prestarem atendimento voluntário virtual aos trabalhadores, em um formato que permitisse um suporte sistemático, conforme a necessidade evocada por cada situação.

Constituímos, então, uma Rede de quarenta psicólogo(a)s voluntário(a)s, disponíveis para prestar apoio aos trabalhadores e familiares em situações relacionadas à pandemia. Construímos e pactuamos, algumas regras de encaminhamento, acompanhamento, desligamento e troca de informações com os psicólogos voluntários e disponibilizamos um material de orientações que pudesse apoiá-los na atividade que viriam a desenvolver. Todas as demandas, no entanto, eram primeiramente direcionadas aos psicólogos da CST que acolhiam e estabeleciam um primeiro contato, explicando o funcionamento e fazendo os encaminhamentos.

Esse grupo de colegas da Rede trabalhou por um ano e oito meses, acompanhando cerca de cento e vinte pessoas, trabalhadores dos hospitais, das escolas, das fábricas, dos laboratórios, e da gestão, entre outras áreas. O trabalho foi organizado coletivamente, a partir de relações de confiança com cinco psicólogos da CST, que ampliaram seu poder de agir através dos braços de profissionais disponíveis, implicados e interessados em fazer parte de um movimento amplo de acolhimento ao outro.

Vimos, assim, a formação de uma rede potente que se prontificou a oferecer cuidado aos trabalhadores de uma instituição com a qual nenhum de seus membros possuía qualquer vínculo laboral, foi viabilizada por valores compartilhados, tais como solidariedade e compromisso social. Esta iniciativa se configurou como mais uma possibilidade de ampliação do alcance da atuação da equipe de psicologia da coordenação de saúde do trabalhador na direção de uma ECRP.

Entendemos que naquele momento pandêmico, diante do inédito, de uma emergência sanitária de proporções ainda não vivenciadas pela grande maioria de nós, e diante do agravamento das questões de saúde mental, uma mobilização se formou em nós, e também naqueles psicólogos que conhecíamos e que convidamos para fazer parte dessa rede e nos apoiar. O aceite ao convite era quase imediato para todos aqueles que chamávamos. Havia um desejo e um propósito comum, que começava a ser partilhado.

Durante esse período em que a Rede funcionou, realizamos algumas reuniões e nossas trocas com eles eram frequentes. Fosse nas reuniões mais amplas com a presença de mais voluntários, fosse no esclarecimento de alguma situação mais delicada quando o encaminhamento era feito, fosse ao longo do acompanhamento proposto quando o psicólogo voluntário estava diante de algum impasse. As trocas foram deixando cada vez mais claro que entre nós, a equipe de saúde mental da instituição, e os psicólogos voluntários, se estabelecia um coletivo com um certo modo de ofertar cuidado baseado em confiança e cooperação.

Os valores que circulavam eram redimensionados na atividade e apareciam de diferentes formas nos momentos de troca, e também através do retorno que recebíamos dos trabalhadores que eram atendidos pela rede, quase sempre impactados pelo modo singular como o cuidado era oferecido.

A disponibilidade ofertada por aqueles profissionais e a mobilização que demonstravam para a oferta de cuidado não se traduzia em números ou na quantidade de trabalhadores atendidos, mas no desejo comum de fazer diferença naquele momento. Desejo que nós compartilhávamos. Essa rede que incluía os psicólogos voluntários e a nossa equipe não se caracterizava somente como uma rede de atendimento psicológico em uma emergência sanitária global, mas como uma rede de solidariedade, permeada por determinados valores, que foram sendo tecidos no processo.

Segundo Schwartz (2010b), nas entidades coletivas relativamente pertinentes está permanentemente em jogo algo relativo ao “viver junto” ou da promoção de “bens comuns” (p. 150). E foi isso que pudemos vivenciar nessa experiência. Uma tentativa de produzir renormatizações, de fazer valer certas normas de vida, um certo modo de estar no mundo que nos tornou Rede naquele momento.

6. As conversas entre a equipe e importância do espaço público de discussão e deliberação

A pluralidade da instituição e das situações que envolvem a saúde mental e trabalho, a partir das quais trabalhadores de diversas áreas de atuação, cargos, funções e vínculos de trabalho demandam nossa atuação, exigem um debate constante entre a equipe para que juntos possamos tecer os encaminhamentos possíveis.

Embora o referencial teórico funcione como lente através da qual vemos o mundo do trabalho e como caixa de ferramentas que nos auxilia na prática, há sempre algo de novo e inventivo no trabalho que mobiliza nossas ações. Contudo, bem como ocorre na perspectiva individual, na qual se observa uma lacuna sempre presente entre o trabalho prescrito e o real, no âmbito coletivo, mesmo o cumprimento mais rigoroso das prescrições por uma equipe não é suficiente para que o seu trabalho aconteça de forma bem-sucedida. Isto porque não basta a mobilização subjetiva individual para lidar com a atividade. Não houvesse nenhum tipo de harmonização, haveria o risco de as inteligências e o modus operandi singulares caminharem em direções divergentes e incoerentes. Neste sentido, (Dejours 2012) sinaliza que o trabalho coletivo é o elo que conecta, de um lado, as inteligências e habilidades existentes como potência nos indivíduos e, de outro, a sua atualização como contribuições à organização efetiva do trabalho. Desta forma, “um trabalho coletivo só é possível se obtiver a reunião das inteligências singulares para inscrevê-las em uma dinâmica coletiva comum” (Dejours 2012), p. 79). A cooperação entre os pares depende da compreensão e do conhecimento da maneira como os outros trabalham. Isto significa que a cooperação requer visibilidade do trabalho, de modo que os pares saibam e compreendam como cada um atua em determinada situação.

Por isso, a troca constante entre os membros da equipe tem sido fundamental para a construção e fortalecimento do trabalho que realizamos. Podemos dizer que temos, no cotidiano, um espaço de discussão e deliberação no qual nossas inventividades são colocadas, debatidas e pensadas coletivamente, na construção dos encaminhamentos e estratégias adotadas para cada situação. Deste modo, não somente pensamos e construímos intervenções e ações possíveis junto aos trabalhadores que nos trazem suas demandas, mas também, cotidianamente pensamos juntos os caminhos destas intervenções e ações, independentemente de quais membros da equipe estejam mais diretamente envolvidos no acompanhamento de cada demanda.

Esse espaço de compartilhamento, de discussão e deliberação sobre o trabalho no interior da equipe, exige confiança pois, ao falar de como se está lidando com as situações no trabalho, cada um de nós se arrisca, podendo expor, também, as falhas do próprio saber-fazer. Nas discussões sobre o trabalho que ocorrem em equipe, além das boas escolhas e astúcias individuais, surgem divergências, controvérsias e, ainda, os colegas podem tomar conhecimento de imperícias e até mesmo infrações às regras cometidas pelos demais (Dejours, 2012). Portanto, para que possamos dar visibilidade aos próprios modos operatórios é preciso que tenhamos confiança na lealdade dos pares a ponto de expormos artimanhas e modos de operar sem medo de ser passados para trás. Como afirma (Dejours 2012), abrir espaço para a questão da confiança no seio da cooperação é introduzir no trabalho algo de fundamentalmente heterogêneo em relação à técnica. A confiança repousa de fato sobre questões que não são de ordem técnica, nem de ordem psicológica, são de ordem ética.

A presença da confiança é algo que percebemos no nosso trabalho. Talvez porque percebemos a mobilização de todos e um desejo comum de que o trabalho aconteça e seja relevante para aquele que nos procura. Também porque buscamos sempre cuidar uns dos outros, não somente por uma questão afetiva, que envolve um valor do bem comum, mas também por uma questão efetiva, pois sabemos que desse zelo e confiança dependem a qualidade e eficácia do nosso trabalho (Schwartz, 2010a).

Ao mesmo tempo que o trabalho é dinâmico e vivo, nos levando sempre a novas situações em que é preciso novamente debater e deliberar, algo dessas discussões é incorporado ao nosso patrimônio e nos ajuda a lidar com situações futuras. Conseguimos estabelecer regras comuns no trabalho que nos dão a garantia de que quando pedimos algo para um ou outro membro da equipe, há algo compartilhado no nosso saber-fazer e na forma de encaminhar as coisas. Sabemos que se algo de muito inédito voltar a ocorrer, teremos nosso espaço de discussão, deliberação e confiança para pensarmos juntos.

Além do debate entre os membros da equipe formal, dada a complexidade das situações que enfrentamos no trabalho é comum que precisemos envolver e convocar diferentes instâncias na instituição. Ampliar esse debate sobre saúde mental e trabalho para coletivamente transformá-lo é uma estratégia fundamental de nossa atuação, ancorada nas perspectivas ergológica e da PdT.

7. Últimas Reflexões

No contexto da pandemia provocada pelo novo coronavírus, o tema saúde mental ganhou notoriedade na instituição e isto se refletiu nas atividades realizadas pela nossa equipe. O desejo de compartilhar nossas práticas e reflexões é fruto do entendimento de que as experiências vivenciadas por esta equipe, e ampliadas por meio da construção de entidades coletivas relativamente pertinentes, pode contribuir para a compreensão e operacionalização de conceitos da Psicodinâmica do Trabalho e da Ergologia.

A formação da rede de psicólogos voluntários, constituída em tempos de capitalismo neoliberal, nos remete à dimensão micropolítica da nossa atividade cotidiana, na medida em que toca as relações de poder que operam nos coletivos, aumentando a potência de “uma vida em composição com forças heterogêneas" (Carvalho, 2019).

A ideologia neoliberal prega tanto a oneração de cofres públicos quanto a desmoralização do Estado (por meio do ataque à moral de seus trabalhadores, especialmente servidores públicos) para convencer a opinião pública de que as intervenções do Estado sobre políticas sociais geram problemas para o conjunto da sociedade (Dardot & Larval, 2016).

Mas, em outra direção, a rede de apoio psicológico aos trabalhadores da instituição, foi ao encontro de alguns elementos-chave da atividade de todo serviço público. Elementos estes que remetem tanto ao imaterial, como reconhecimento, respeito e tolerância na relação com os outros, quanto ao material, como, por exemplo, o direito ao acesso de todos à saúde (Chanlat, 2002). Na mesma direção dos elementos-chave do serviço público, os ajustes e criações realizados nas atividades de trabalho para dar conta do contexto da pandemia provocada pelo novo coronavírus - especialmente a construção da rede de psicólogos voluntários - apontam para a implicação da psicologia com as demandas sociais. O Código de Ética Profissional dos Psicólogos traz como princípios a atuação com responsabilidade social e a análise crítica da realidade política, econômica e cultural (CFP, 2005). Os psicólogos voluntários atuaram de abril de 2020 à dezembro de 2021 ofertando suporte contínuo e gratuito aos trabalhadores que buscassem o serviço de psicologia da CST, em uma demonstração de compromisso social que a profissão exige. Em dezembro de 2021 foi realizado um evendo de encerramento e reflexão sobre a Rede e, por fim, a contra-referência de trabalhadores que ainda precisariam de suporte por mais algum tempo.

Neste sentido, ressaltamos, mais uma vez, o que aponta Dejours (2012), quando afirma os espaços públicos de discussão como espaços fundamentais para a cooperação, e para o trabalho. As experiências dos Diálogos em Saúde Mental e Trabalho, do Conversas sobre o Trabalho são bons exemplos disso.

O que vimos aprendendo diz respeito à possibilidade de propagação de uma experiência, que nasce na constituição de uma equipe de psicólogos alinhados em valores e referenciais da saúde do trabalhador, e vem crescendo institucionalmente através de diálogos, negociações e disposição para a ação. Nos impressiona e alegra constatar a potência que um trabalho construído coletivamente e verdadeiramente implicado pode alcançar, ao longo do tempo, servindo de apoio para formação, cuidado e criação de inúmeros espaços de reflexão.

Por fim, ressaltamos um caráter central apresentado nesse texto que diz respeito ao coletivo. A dinâmica engendrada pelos psicólogos da CST aponta para a complexidade e para a característica provisória do que chamamos de coletivo, conforme já apontado pelo termo ECRP. A exposição da experiência de cuidado em saúde mental na pandemia da covid-19 não buscou a comparação a outras experiências e realidades, contudo, esperamos que possa ser capaz de incitar e contribuir com outros estudos nessa direção.

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1Grupo de pesquisa Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ)

Recebido: 01 de Abril de 2022; Aceito: 25 de Outubro de 2022

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