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Revista :Estúdio

versão impressa ISSN 1647-6158

Estúdio vol.7 no.15 Lisboa set. 2016

 

ARTIGOS ORIGINAIS

ORIGINAL ARTICLES

Processos de criação na obra de Maya Watanabe

Creation processes in the work of Maya Watanabe

 

Sylvia Beatriz Bezerra Furtado*

Brasil, artista visual, cineasta, videoartista e professora. Doutorado em Sociologia Universidade Federal do Ceará (UFC). Mestrado em Comunicação pela Universidade Autônoma de Barcelona-UAB, Espanha. Graduação em Comunicação pela Universidade Federal do Ceará.

AFILIAÇÃO: Universidade Federal do Ceará, Instituto de Cultura e Arte, Graduação em Cinema e Audiovisual e da Pós-Graduação em Comunicação, da linha de pesquisa Cinema e Fotografia. Av. Carapinima, 1615 – Benfica, Fortaleza – CE, 60015-290, Brasil.

 

Endereço para correspondência

 

RESUMO:

Artigo explora os processos de criação em algumas obras de Maya Watanabe, em especial as operações que envolvem o cinema e artes visuais. A pesquisa, o campo de investigação, a passagem para a mesa de trabalho, o desenvolvimento da obra e o modo de expor as telas no espaço. Maya Watanabe pensa o espaço, o quadro, a cena, a montagem, a dimensão da linguagem, o tempo e a narrativa como forças de composição da obra.

Palavras chave: Cinema, Video instalação, Maya Watanabe.

 

ABSTRACT:

The article explores the creative processes in some works of Maya Watanabe, in particular transactions that involve cinema and visual arts. The research, the investigation field, the passage to the desk, the development of the work and the way to expose the screens in space. Maya Watanabe thinks the space, the picture, the scene, the assembly, the dimension of language, time and narrative as composition of the work force.

Keywords: Cinema, video installation, Maya Watanabe.

 

Introdução

A obra de Maya Watanabe traz para o centro do processo de criação a relação entre o que é propriamente do cinema e das artes visuais, não apenas porque utiliza de um e de outro campo artístico algumas de suas ferramentas mas porque faz delas o problema mesmo de seus trabalhos. Desde a forma como monta os procedimentos de suas pesquisas, como constitui um campo de investigação, até a passagem dos dados da pesquisa para a sua mesa de trabalho, o que se explicita é a elaboração de um pensamento plástico e sonoro que dialoga com o cinema ao mesmo tempo que o enfrenta com na sua expansão no espaço expositivo. É desse lugar que as questões sobre a linguagem, o tempo, a narrativa, a identidade e alguns outros problemas que inquietam a artista derivam como obras em imagem em movimento. Assim, propomos neste texto tentar explicitar os procedimentos em algumas de suas obras, todas elas realizadas para serem expostas no espaço museal, em forma de videoinstalações.

Maya Watanabe é uma artista nascida no Peru, em 1983, que vive entre Amsterdam, Paris e Madrid e, agora desenvolve pesquisa em Tóquio. Suas obras estão em meio a performance e filmes instalados e investigam a experiência do silêncio, da fragmentação como resistência ao que modela e interrompe o sentido. Textos, imagens e extratos de filmes são referências recorrentes. Por vezes, como uma questão da mise-en-scène quando os corpos se põem em formas e movimentos na paisagem urbana, como ocorre em "El Contorno" (2011), em que há um exercício coreográfico no qual cinco performers e a câmara se relacionam no quadro filmográfico, numa clara referência à posta em cena mediada pela câmara e todas as decisões que daí decorrem.

Por outro, é a relação do indiscernível, do lacunar e da ausência que se apresenta como uma ação da memória, tal como se faz, mais uma vez, na tensão entre a cena e espaço, em "Escenarios" (2014), (Figura 1). Uma vídeo instalação, exposta em tríptico: em "Escenarios I", um dos "quadros", se observa um carro abandonado que pega fogo no deserto. No "Escenarios II", no alto de uma colina tomadas de brumas se assiste a um cemitério clandestino. Em "Escenarios III", entre em cena a ilha El Front, que abrigou uma prisão e foi bombardeada, matando 80% dos prisioneiros, quase todos do Sendero Luminoso, e que hoje se encontra interditada.

 

 

1. O filmográfico, obra por obra

No recorte desta análise, passamos a seguir as obras de Maya Watanabe a partir de uma linha recorrente em seus trabalhos, qual seja, o uso continuado, obra por obra, de elementos ou problematizações daquilo que, em geral e por força do legado das teorias do cinema, se chama de linguagem cinematográfica. Essa escolha que não se dá ao acaso, ela deve dos próprios trabalhos, que, desde minha perspectiva, se resolvem como obra através de um pensamento construídos através das formas fílmicas. Eis então a força do seu trabalho como forma plástica e sonora, como resultante de um problema da imagem, do desenho sonoro, dos movimentos, dos quadros, dos planos cinematográficos e, através de problematizações com as línguas, da estrutura narrativa.

Eis então os motivos pelos quais o processo de criação tem na sua obra um embate fundamental com o cinema que resulta sobretudo de um tipo especial de produção artística, aquela que não apenas usa o cinema como um instrumento (uma escolha de uso com fins dirigidos a outros interesses) mas que o toma como matéria sensível. Maya Watanabe não usa as imagens em movimento e o desenho sonoro como ferramenta para construir algo, mas como força, explorando suas possibilidades para além dos seus formatos históricos. Há uma produção de formas, de usos, de deslocamentos de formas, que, no mais das vezes se encontra em uma forma dada em um lugar improvável.

É nesse intermeio, no entre o formalismo clássico do cinema, na sua tradição de linguagem, e as proposições artísticas de Maya Watanabe que se encontra um processo de criação como pensamento das imagens em movimento. Mesmo quando o trabalho é marcado por problemas muito específicos, como o embates com problemas linguísticos, políticos, religiosos, sociais, etc., é no campo cinematográfico que ele toma forma e encontra seu universo sensível.

Mesmo quando a tentativa é a de encontrar uma expressão para o que ela própria define como sendo questões identitárias, onde se observa uma forte influência, por exemplo, do pensamento de Ludwig Wittgenstein, quando afirma que as fronteiras de nossas línguas são as fronteiras de nossos mundos – "The limits of my language, mean the limits of my world" – (Wittgenstein, 1922), não é a ubiquidade linguística mas a matéria fílmica que lhe traz a resposta como obra.

 

1.1 "El Péndulo" (2013, 15'45)

Três telas com escala superior em pelo menos duas vezes o corpo humano, posicionadas em forma de um tríptico pictural. Em cada uma delas, três homens se posicionam nas pontas dos três ângulos de um triângulo espacial. Estão de costas um em relação ao outro. Não há referencia ao espaço onde se encontram, embora suas vestimentas, calça e sweater, entre os tons de cinza e preto, deixem situar a sua temporalidade no tempo presente. Esses homens formam um coro de vozes que canta e recita alguns versículos de três livros sagrados das três grandes religiões monoteístas: Torá, Novo Testamento e Alcorão.

Os trechos extraídos dos livros do judaísmo, cristianismo e islamismo são recitados pelos três atores nas línguas que lhes identificam. O antigo hebreu, da Torá; o grego, do Novo Testamento; e o árabe antigo, do Alcorão. O Alcorão, como livro sagrado do Islão, é tomado pelos muçulmanos como a palavra literal de Deus, Alá, revelada pelo profeta Maomé (Muhammad) e em árabe significa declamar. É, portanto, uma recitação. O Novo Testamento é a segunda parte do conjunto de textos que compõem a Bíblia cristã, escrita após a morte, ressurreição, e ascensão, de Jesus Cristo. A Torá é o texto central do judaísmo onde se encontram os relatos sobre a criação do mundo, a origem da humanidade, o pacto de Deus com Abraão e seu filhos e a libertação dos filhos de Israel do Egito.

Os três atores estão postos em cena, em cada uma das telas, se deslocando em círculos até e em determinados momentos se fundem em um plano de conjunto. Os textos recitados ganham manifestações rítmicas tradicionais a cada culto. Esse desenho de voz se faz numa progressão que desloca o sentido dos textos ao mesmo tempo que os sons do canto e das recitações se tornam indistintos e, por vezes, inaudíveis. É esse fluxo sonoro, cujas fontes vão se misturando e perdendo o sentido que obriga ao fruidor da obra um trabalho de efetivo de atenção, de ocupação dos vazios produzidos pelo inaudível. É esse jogo sonoro que produz a dúvida, o indiscernimento em relação ao que cada um diz e ao tom que alcançam, e ao que isso faz, o que reverbera, o que transita como lei.

Se o texto e as modulações de vozes e a mistura das línguas produzem essa instabilidade que a tudo torna ininteligível, além de colocar em tensão os lugares de cada um, suas identidades na forma de adesão aos textos sagrados e aos povos que se formam em torno deles, é o movimento de câmara que faz com que a circularidade, o movimento de repetição, este que se volta sobre as formas do infinito, que faz com que nunca seja possível fixar um ponto de vista. Ou seja, é o movimento de câmara, quase da ordem impercetível, pois extremamente ralentado, que não fixa, nem a imagem nem o lugar daquele que flui o trabalho. Processo que se avoluma com as passagens dos atores de uma tela a outra.

A obra de Maya Watanabe responde a uma pesquisa de campo, no sentido mesmo do que faz a antropologia, numa espécie de pedagogia do território. Ou talvez se possa dizer que o seu set de filmagens foi do campo à mesa de trabalho para chegar na definição da locação, da escolha dos atores, dos textos extraídos dos livros ou de filmes, para então chegar a uma definição de plano, de figurino, de movimento de câmara, de luz, o plano de modulação de voz, de luz, de enquadramento, etc.

Em "El Péndulo" (Figura 2) a estrutura narrativa é claramente informada pelo cinema moderno, aquele cujas bases se fizeram na ruptura com as linhas do tempo contínuo. E é justo essa fragmentação narrativa, onde textos e coros são tratados mais como texturas e se processam nos desenhos dados aos volumes, no trabalho dos tons e com as misturas linguísticas em seus diferentes ritmos, que pode fazer ver as dissonâncias do que se diz identitário, constituidor do indivíduo e do coletivo.

 

 

Não há um lugar fixo de onde os enunciados emitem uma só ordem de comando. Nem mesmo um lugar específico de onde eles viriam. A tela escura, sem definição nem paisagem, situa os atores em lugar nenhum. Não há discurso/língua possível. As narrativas sobre as escrituras sagradas, sua origem e suas divergências/vertentes se perdem na estrutura espacial da cena: um mapa fragmentado, sem contexto, sem referencias.

 

1.2 Aphanousia (2008, 5')

Primeiro de uma série, "Aphanousia" é uma videoinstalação em que uma atriz toma para si muitas vozes que são áudios originados de filmes. É um monólogo em que a atriz, uma mulher que atua de forma automatizada, com pouquíssimas variações expressivas, sempre muito séria, e que aparece em planos médios ou abertos. As vozes são compostas por enunciados em diferentes tempos verbais e os sujeitos das falas vão se modificando, o que produz uma multiplicidade de outros em uma só e mesma pessoa. "Aphanousia", título da obra, é um jogo de palavras gregas. Trata-se de uma montagem do prefixo A, de negação, com pha(n), de mostrar, aparecer, com ousia, de essência ou substância. Montagem que é também a base de composição da obra. E se podemos tomar a montagem como a principal referencia do cinema soviético, em especial o produzido por Serguei Eisenstein (2002), em "Aphanousia" menos do que querer fazer desse processo uma escrita da lógica dialética, onde cada imagem justaposta a seguinte formaria uma terceira, que é cerebral, aqui encontro uma espécie de vazio, espaço de fissura entre duas imagens, em que não há negação de uma delas em relação a outra, onde a palavra se abre ao seu próprio esvaziamento.

Soltas, desconexas, espécie de colcha de retalhos de múltiplas vozes, os textos/áudios vão entram em jogo sem uma referencia e dessa forma vão perdendo seu significado. O que cada áudio dá a ver são mais o quão as palavras se esvaziam de sentido à medida que saem de seus contextos e entram em conexão com outras palavras, outras frases, outras tonalidades de vozes. Os pequenos trechos das bandas sonoras dos 23 filmes que compõem "Aphanousia", extraídas e reunidas em uma ordem arbitrária, se dissolvem e evocam novas outras imagens.

Jean-Luc Godard, John Cassavetes, Martin Campbell, Michael Bay, Frank Oz, Théo Angelopoulos, Harold Ramis, David Fincher, Terence Malick, Todd Philips, Robert Zemeckis, Chris Marker, Isabel Coixet, Marta Kauffman & David Crane, Stephen Hopkins, Ted Demme, e Ingmar Bergman em um ou mais filmes são citados, num misto de homenagem ao cinema e referência teórica, de pensamento das imagens e sons em movimento. E ao mesmo tempo que essas citações são postas em circulação é o sentido da linguagem, da narração, que perde sua origem. Aphnousia diz da palavra, da frase, do texto, como um dado do inexpressivo, do que desaparece quando está fora de um contexto, situado.

 

1.3 Abrasis (2009, 5')

O mesmo movimento de deslocar o sentido do texto, dos sujeitos enunciadores, de multiplicação dos muitos outros que habitam em um mesmo, pode ser experimentado em "Abrasis" (Figura 3). Neste trabalho, isso ocorre numa estrutura narrativa realizada em duas telas paralelas, por dois atores que são absolutamente parecidos. Essa semelhança é física, altura, cor da pele e dos cabelos, barba, tipo de rosto, mas também de expressão do corpo e no rosto. São semelhanças entre dois, dois em um, um em dois, um e outro em muitos. O outro que, uma vez mais nessa série, são falas e desenhos sonoros extraídos de filmes e montados sobre uma nova mise-en-scène.

 

 

Os dois atores ocupam o centro do quadro, na maior parte do tempo em planos frontais ou espelhados e numa mesma proporção. Os seus movimentos no campo, no mais das vezes, são duplicados e se dão numa mesma direção ou ainda por espelhamento. As paisagens que embora distintas têm a mesma composição e escalas de quadro comuns. O olhar dos atores se dirige ao fora de campo, às vezes dirigido ao olhar centralizado do espectador e por outro relacionado a um ponto no infinito, forma de olhar que se conjuga com a expressão dura de seus rostos. Há uma dramaturgia do mínimo, de corpos em movimentos calculados.

 

Conclusão

"Abrasis", assim como "Aphanousia" e "Autorres" (2005, 1"), primeira das vídeo-instalações de Maya Watanabe, é um trabalho de apropriação de trechos de bandas sonoras de filmes, fonte das múltiplas falas dos muitos diretores que o compõem, especialmente do cinema moderno. Esse uso tem o propósito claro de, em fazendo circular, em outro contexto, essas citações fílmicas, produzir o esvaziamento dos seus sentidos originais e fazer reverberar a questão dos quantos Outros (línguas, pessoas, lugares, etc.) constituem os limites e as possibilidades do Indivíduo e do Coletivo. É essa a questão que a imagem em movimento tenta responder em suas formas fílmicas.

 

Referências

Eisenstein, Serguei. (2002) O Sentido do Filme, Zahar, Rio de Janeiro.         [ Links ]

Watanabe, Maya (2015) Maya Watanabe. Sítio da artista. [Consult. 2015-12-00] Disponível em http://www.mayawatanabe.com        [ Links ]

Wittgenstein, Ludwig, (1922) Tratado Lógico Filosófico, [Consult. 2015-12-00] Disponível em https://zcosmos.wordpress.com/2010/05/25/wittgenstein-tractatus-logico-philosophicus-5-6-and-5-61/        [ Links ]

 

Artigo completo recebido a 29 de dezembro de 2015 e aprovado a 10 de janeiro de 2016

 

Endereço para correspondência

 

Correio eletrónico: sylviabeatrizbezerrafurtado@gmail.com (Sylvia Beatriz Bezerra Furtado)

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