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Revista :Estúdio

Print version ISSN 1647-6158

Estúdio vol.10 no.27 Lisboa Sept. 2019  Epub Sep 30, 2019

 

Artigos originais

O limite e a tensão atuante na obra de Hugo Paquete

The threshold and actant tension in the work of Hugo Paquete

Pedro Daniel da Costa Ferreira*1  , Doutorando em Belas Artes - Arte Multimédia

1 Doutorando em Belas Artes - Arte Multimédia, Universidade de Lisboa, Faculdade de Belas-Artes (FBAUL), Centro de investigação e Estudos em Belas Artes. Largo da Academia Nacional de Belas Artes 14, 1249-058 Lisboa, Potugal.


Resumo:

Este artigo apresenta uma análise da obra "Zoe: Actant" (2017) de Hugo Paquete. Contextualizo a sua obra como prática pós-digital. Através de tecnologias híbridas, a obra combina fenómenos intangíveis à perceção humana, tornando-os percetíveis através de um sistema autónomo e mediações tecnológicas. A obra explora sonoridades acusmáticas através do entrelaçamento de atuantes humanos e não-humanos. Paquete apresenta-nos assim outras maneiras de ouvir, ver e pensar o Real como rutura, espaço de tensão, e estética de glitch.

Palavras chave: arte multimédia; instalação; arte sonora; pós-digital; ruído

Abstract:

This article presents an analysis of the work "Zoe: Actant" (2017) by Hugo Paquete. I contextualize his work as post-digital practice. With the use of hybrid technology, the work com-bines phenomena intangible to human percep-tion, rendering them perceptible through an autonomous system and technological mediations. The work explores acousmatic sonorities by the interweaving human and non-human actants. Paquete thereby presents us with other ways to listen, see and think about the Real as breaks, tension space, and glitch aesthetics.

Keywords: media art; installation; sound art; post-digital; noise

Introdução

Este artigo apresenta uma análise da obra "Zoe: Actant" (2017) de Hugo Paquete. A obra foi desenvolvida durante 3 meses na sua residência artística no Hospital Divino Espírito Santo em Ponta Delgada nos Açores e apresentada como performance e instalação no Arquipélago Centro de Artes Contemporâneas. Assim como, o resultante álbum intitulado "Dark Electromagnetic Field" (2017). Procura-se aqui fazer uma reflexão sobre as particularidades da sua investigação e prática artística multidisciplinar que a contextualizo como pós-digital. A obra do autor encontra-se em resistência a modelos convencionais de produção artística com base nas múltiplas disciplinas que cruza.

Hugo Paquete, nasceu em 1979 em Portugal, é artista de arte intermédia e sonora. Bolseiro da Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT). Doutorando em Ciências Musicais na Universidade Nova de Lisboa. Tem vindo a desenvolver uma pesquisa multidisciplinar sobre arte sonora, ruído, tecnocultura e as condições e estéticas pós-digitais. Na sua obra, explora conceitos de imprevisibilidade através de sistemas de interação entre som, vídeo e gesto performativo.

Através de uma análise detalhada das várias documentações da instalação e da performance, de registos sonoros, vídeo e texto, e a partir de conversas com o autor, pretendo aqui examinar como a sua obra apresenta outras maneiras de ouvir, ver e pensar o pós-digital, no modo como afetam a nossa experiência da obra de arte e os processos de criação na contemporaneidade.

1. Pós-digital, ruturas, tensões e glitches

A obra "Zoe: Actant" (2017) é um ambiente de instalação imersivo, de tensão performativa, nos limites sonoros e visuais da representação (Figura 1). Na sua obra, Hugo Paquete explora processos híbridos para além das funcionalidades padrão impostas por sistemas computacionais. Utiliza assim tecnologias digitais e não-digitais numa prática de arte contemporânea pós-digital. O conceito pós-digital foi inicialmente introduzido num contexto artístico sobre práticas contemporâneas de música criada por computador pelo compositor de música eletrónica Kim Cascone como "a estética do erro" (Cascone, 2000). Para Florian Cramer, o pós-digital refere-se à recente condição e estado dos media depois do seu processo de digitalização. Cramer, entende que o prefixo "pós" não implica o fim do digital mas uma continuação do digital, nas mudanças culturais subtis e mutações continuas, após a propagação do digital, da computação, de redes globais de comunicação, mercados e geopolíticas (Cramer, 2015). Como metodologia, o pós-digital serve como um incitador para análise critica sobre o papel das tecnologias digitais na sociedade contemporânea (Kwastek, 2015). A condição pós-digital manifesta-se em diferentes práticas artísticas que "não estão preocupadas com o digital em si, mas sim com a vida depois do digital" (Bishop, Gansing, Parikka, 2016:11).

Figura 1 Hugo Paquete. “Zoe: Actant”, Performance, Arquipélago Centro de Artes Contemporâneas, Açores, Portugal, 2017. Fonte: Arquipélago Centro de Artes Contemporâneas 

A partir destas práticas, rejeita-se o espetacular nas tecnologias digitais em função de se revelar e explorar materialidades computacionais abstratas e de compreender as regulamentações impostas por estas, que "estão escondidas por detrás de várias camadas de user-friendly software, hardware, cloud-based rocessing e serviços de armazenamento" (Mirocha, 2015:58). Para Hugo Paquete, o pós-digital é uma "manifestação de uma atitude punk que explora, partindo da racionalidade da máquina e da sua operatividade, um contradiscurso. Com vista à desconstrução dos modelos funcionais, aponta para manifestações artísticas mais indeterminísticas" (Paquete, 2018:282). Seguindo este critério, Hugo Paquete excede os limites impostos pelas tecnologias digitais na utilização do computador para programar o seu próprio software de composição generativa e interação de processos de sonificação e visuais.

Através de tecnologias híbridas, combina fenómenos intangíveis à perceção humana, tornando-os tangíveis ao humano através de mediações tecnológicas e de um sistema autónomo. Isto é feito através de uma captura prévia sonora de campos eletromagnéticos das máquinas do hospital tornando-os numa base de dados e em samples digitais, na captura da variação de luminosidade no espaço convertido para som e vídeo em tempo real através de midi, "como vírus e bactérias que se encontram num estado de imanência e são revelados pela tecnologia" (Paquete, 2017:1056). Desta forma, a sua obra combina o espaço físico com espaço virtual, onde o som e vídeo confluem e elaboram complexos regimes de perceção na interceção de arte, ciência e cognição.

Este material vai sendo interpretado ao vivo, estando em constante hibridação pela aplicação do gesto performativo, tecnologia aplicada e interação do público como atuante, catalisador no interior de um sistema vivo e imprevisível. Sendo a soma de todas estas interações o diagnóstico experimental (Paquete, 2017).

Neste ambiente, de "diagnóstico experimental", o/a espetador/a confronta-se com uma estrutura de ruídos complexos, repetição de texturas e ritmos, de glitches, murros e facadas sonoras de detritos e erros tecnológicos, e estímulos visuais em constante tensão de transformações dinâmicas como parte da sua estética e processo criativo. Tensão esta, que cria uma multiplicidade de materializações através da sonificação de campos magnéticos, luminosidade e eletricidade amplificada que operam em trocas de matéria e energia, e criam complexos padrões de ruídos contemporâneos aplicados em composições acusmáticas. Estes sistemas de forças em constante rutura, articulam composições de ruídos e arranjos de frequências ecléticas que ressoam autonomamente no espaço em estado de sobrecarga audível na variação de pitch e intensidades contrastantes que revelam uma estética de glitch, de transições imprevisíveis de sons de erros e detritos tecnológicos. "A materialidade do digital não se reduz ao ecrã, nem ao software, nem também ao hardware. É uma realidade distribuída massivamente que condiciona as nossas realidades percetivas" (Bishop, Gansing, Parikka, 2016:13).

"Zoe: Actant" (2017) (Figura 2) cria uma experiência sensorial corporal entre o espaço instalativo, interação e limites da perceção humana, amplia novas abordagens sobre o real através da compreensão de agentes não-humanos e atuantes de ações. A partir da geração de situações e eventos em constante transição que existem numa dimensão computacional, física, de gesto e movimento, estende a cognição humana a um mundo amplificado de fenómenos não percetíveis ao humano.

Fonte: autor.

Figura 2 Hugo Paquete. “Zoe: Actant”, Patch, 2017. 

Na utilização de ruídos impercetíveis das máquinas, Hugo Paquete amplia a nossa perceção do real, revelando outras práticas artísticas na criação de arte contemporânea. Nos limites e espaços de tensão, revela-se um modelo de produção artística na construção de uma arquitetura sobre o espaço físico e espaço virtual que distorce o vídeo de formas tradicionais, bem como o som imune de composição musical tradicional. Rejeita assim seduções e belezas estéticas representativas na instauração de um sistema de interações no limite da perceção através da multiplicidade de imagens manipuladas e da sobrecarga sonora gerada em tempo real de sons não representativos. As tecnologias digitais, que condicionam a maneira como compreendemos o mundo e a sociedade, são assim desdobradas em outras explorações e relações entre tecnologia, ciência e arte na conceção de arte contemporânea, e na experiência de ouvir, ver e pensar sobre o espaço.

2. A vida atuante e agentes não-humanos

A etimologia da palavra Zoe é de origem grega, zōē, que significa vida, estado de existir ou ser. Atuante, em teoria e método de Actor-Network Theory (ANT), é uma abordagem no qual se entende que tudo no mundo natural e social existe em redes de relacionamento em constante mudança. Não se limita apenas a atores humanos individuais mas "estende a palavra ator - ou atuante - a entidades não-humanas e não individuais" (Latour:2). ANT, está presente na obra de Hugo Paquete, em nodes e nas várias conexões e dimensões em constante incerteza que se intercetam na obra através dos patches de composição musical generativa. No qual estabelecem ligações, distribuem e circulam, em transformações de atributos enviados e recebidos entre parâmetros num sistema autónomo que gera sons e visuais. E que também se encontra em constante interação com o humano, gesto performativo e a luminosidade do espaço.

Na sua prática artística, de composição musical não linear e mediada através de diferentes tecnologias, rejeita construções narrativas convencionais e outras ordens impostas na criação e produção artística. Abre desta forma uma nova relação entre sons e visuais, em constante conexão entre eles, a uma exterioridade fora da representação humana, a elementos não-humanos, que controlam e interferem uns aos outros.

Na compreensão sonora das máquinas do hospital, a obra exemplifica uma mediação complexa de matéria, rica em várias camadas, que se tornam fins em si mesmos. Esta encontra-se numa relação de hibridização, de mediação e de entrelaçamento, de atores não-humanos e humanos, entre os eventos gerados em tempo real e o material que antecedem outras temporalidades de recolha e experimentação, na repetição de texturas sonoras e em vários níveis de significação entre som, imagem, objetos, espaço e o atuante ou performer. A sua obra trabalha o som mapeado e espacializado em quadrifonias pelo espaço e para além de dimensões espaciais do ecrã bi-dimensional.

Na transformação de espaço arquitetónico, com objetos do hospital, eventos sonoros e visuais, "Zoe: Actant" (2017) cria um espaço imersivo que aumenta a perceção do humano. Não só transpondo-o metaforicamente para o bloco operatório, enfrentando a lâmina do bisturi, ou ligado às máquinas num estado de coma, entre vida e morte, mas também no entendimento de agentes não-humanos. Designa assim, toda a vida e atividade existente mas impercetível no ambiente do hospital, ou "os processos da máquina num espaço onde forças ocultas manifestam a sua existência centradas no residual" (Paquete, 2015:82). De vida atuante, que faz parte de uma rede interligada em constante troca de relações entre sistema computacional, num estado de vida, em entrelaçamento de eventos imprevisíveis, o humano e o ambiente, na geração da obra em tempo real. Deste modo, o ambiente imersivo em "Zoe: Actant" (2017) não faz uma separação entre a mente e o corpo do humano, nem se centra no humano. Cria uma relação-sistema onde o humano deixa de ser o centro, para ser um atuante em conjunto com outros agentes não-humanos, no ambiente imersivo em espaço físico, que interage com sistemas computacionais-vivencial através de movimentos e transformações no espaço-evento. Gerando assim, uma experiência sensorial afetiva onde o espaço se descobre além dos limites da perceção por mediação tecnológica, artística e cientifica como imaginário e significação.

Conclusão

Na obra "Zoe: Actant" (2017), Hugo Paquete abre outras abordagens no uso de tecnologias digitais e não-digitais através de tecnologias híbridas. Combina fenómenos intangíveis à perceção humana, tornando-os tangíveis através de mediações tecnológicas e de um sistema autónomo. Ao explorar práticas para além de parâmetros padrão e tecnologias híbridas, o entendimento de práticas de arte experimental multimédia e sonora é alargado para além dos limites e normas impostas por tecnologias digitais. Nesta prática artística pós-digital, a obra sugere outras formas de explorar tecnologias e as suas infraestruturas, revelando as várias camadas escondidas por detrás destas.

Através da materialidade da infraestrutura da máquina que é revelada em processos de materialização de sonoridades contemporâneas impercetíveis ao humano, num sistema de tensão e imprevisibilidade não representacional de estética glitch, a obra explora outras práticas experimentais de ouvir, ver e pensar que se relacionam em territórios alargados sobre o real e ruídos da contemporaneidade.

Numa sociedade que se reduz ao ecrã e obedece a padrões impostos por tecnologias, as ruturas, tensões e glitches presentes na sua obra, têm como propósito de confrontar a pessoa que entra no espaço, como participante no processo de criação e interpretação, a imergir, numa experiência sensorial corporal afetiva, entre tensões sonoras e visuais que desobedecem a expetativas tecnológicas e desfiguram os imaginários de tecnologias digitais perfeitas.

Referências

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*Portugal, Artista Multimédia.

Recebido: 03 de Janeiro de 2019; Aceito: 21 de Janeiro de 2019

Endereço para correspondência Correio eletrónico: ferreirapedro@protonmail.com (Pedro Ferreira)

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