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Revista Crítica de Ciências Sociais

versão On-line ISSN 2182-7435

Revista Crítica de Ciências Sociais  no.129 Coimbra dez. 2022  Epub 31-Dez-2022

https://doi.org/10.4000/rccs.14074 

Recensões

Recensão: D’Eramo, Marco (2021), The World in a Selfie: An Inquiry into the Tourist Age1

Eduardo Silva1  , Doutorando no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto
http://orcid.org/0000-0002-0523-8718

1Doutorando no Instituto de Sociologia da Universidade do Porto, Faculdade de Letras da Universidade do Porto, Porto, Portugal, up201207527@edu.letras.up.pt

D’Eramo, Marco. (, 2021. ),, The World in a Selfie: An Inquiry into the Tourist Age. ., London: :, Verso Books, ,, 282p. pp. Tradução de Bethan Bowett-Jones e David Broder [ed. orig. 2017]


Originalmente publicado em 2017,2The World in a Selfie centra-se na “Era do Turismo” (p. 2), período socio-histórico que Marco D’Eramo - o autor do livro - afirma estender-se desde meados do século xix até à contemporaneidade durante o qual o turismo se tornou numa poderosa indústria global que informa como experimentamos, transformamos e pensamos o nosso mundo. Com uma extensa carreira no campo jornalístico, D’Eramo é formado em física, frequentou o curso de sociologia da École Pratique des Hautes Études e publicou vários livros e artigos sobre temas como política, urbanismo e turismo, os quais perpassa em The World in a Selfie para nos dar o seu retrato do mundo enquanto espaço turístico em pleno contexto pandémico global.

“Turismo num tempo de cólera”,3 o capítulo inaugural do livro, aborda como as adversidades comportadas pela pandemia de COVID-19 realçaram a importância do turismo enquanto fonte de receitas económicas e móbil de decisões políticas à escala global. No capítulo 2, “A revolução do lazer”, o autor evoca as raízes do turismo moderno, sugerindo que a sua massificação enquanto prática social advém da melhoria das condições materiais de transporte e de comunicações, bem como da conquista dos direitos à reforma e a férias pagas, e recorda ainda a origem da distinção entre viajante e turista: “As fases do crescente desprezo do viajante em relação ao turista correspondem à disseminação da prática da viagem de lazer da aristocracia para a burguesia (século xix), e depois da burguesia para o proletariado (século xx)” (p. 12). O capítulo 3, “O melhor esgoto do mundo”, relaciona a esterilização sensorial das atividades turísticas - que outrora se desenrolaram em lugares como morgues, zoológicos humanos e prisões funcionais - com a relevação da visão na experiência turística pela promoção de dinâmicas oculocêntricas de ocupação e uso territorial. Já em “O TripAdvisor de Mark Twain” (capítulo 4) é discutida a ação dos turistas na criação de marcadores simbólicos de atração turística pela circulação dos objetos que estes acumulam durante as suas viagens e pelo uso massificado da plataforma TripAdvisor. No capítulo 5, “Turismo à la carte”, D’Eramo discorre sobre a multiplicidade de formas que a atividade turística assume, as quais visam dar resposta às distintas necessidades de diversos segmentos de mercado. Em “Uma breve intrusão por um amigo terrologista” (capítulo 6), sobre as origens do turismo balnear, o autor aponta que as mesmas se encontram na urbanização dos espaços do quotidiano aquando da Revolução Industrial, no contacto dos povos ocidentais com as regiões tropicais e os seus nativos - os quais viviam sem roupa durante os fluxos de colonização - e nos discursos médicos e naturalistas da época que valorizavam o contacto com a natureza e o mar. O capítulo 7, “A cidade do turista”, debruça-se sobre a turistificação das cidades segundo processos de fabricação de autenticidade, tradição e encenação e os riscos que estas assumem por via da monocultura do turismo, discussão que prossegue no capítulo seguinte, “Urbicídio da UNESCO”, que relaciona as atividades turísticas e os processos de patrimonialização dos espaços com a Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (UNESCO) enquanto instituição que lhes confere capital simbólico pela atribuição do selo de Património Mundial da Humanidade. Em “Lijiang: inventando autenticidade” (capítulo 9), o autor salienta como os processos de turistificação dessa cidade chinesa, nomeadamente a reconstrução do seu centro histórico, deram azo à própria UNESCO para questionar a sua autenticidade e, em “Reaprendendo com Las Vegas” (capítulo 10), refere que o enorme sucesso dessa cidade norte-americana como destino turístico se deve aos seus vários marcadores simbólicos e iconográficos - fabricados do zero - e que esta faculta provas de que o turismo se trata de uma indústria: “Las Vegas é para o turismo, portanto, aquilo que Detroit foi para a fabricação de carros. Ambas envolvem produção em massa e megainstalações (no caso de Detroit fábricas; no caso de Vegas hotéis e casinos), e compartilham os mesmos conflitos laborais (em Detroit envolveu trabalhadores de colarinho azul; em Vegas é pessoal do setor dos serviços)” (p. 136). No capítulo 11, “O zoneamento da alma”, D’Eramo fala-nos do zoneamento turístico das cidades enquanto mecanismo de biopolítica que exerce poder sobre os corpos dos indivíduos, impondo-lhes padrões de sociabilidade e de apropriação espacial contrários à noção de urbanidade, e no capítulo 12, “Longa vida à alienação! Ou, descascando a cebola hegeliana”, denota que o turismo reproduz relações de produção e acumulação capitalista análogas às das demais dimensões do nosso dia a dia, e que a atividade turística configura um campo de disputa entre indivíduos com distintos capitais (económico, social e cultural), propondo por isso que a encaremos não como uma eterna busca por autenticidade mas sim como “uma boa alienação” (p. 175). Em “Anseio pelo outro” (capítulo 13), a relevância da ficção científica no imaginário coletivo das sociedades ocidentais durante a Guerra Fria é encadeada com os atuais desejos de compreender o Outro e o que em nós é alienígena, e em “O mundo à nossa disposição” (capítulo 14), o autor frisa a superficialidade das críticas ao turismo a partir da constatação da ausência de alternativas equiparáveis à atividade turística para a ocupação do tempo livre, cuja disseminação global levou à desdiferenciação dos padrões de sociabilidade entre convidados e anfitriões e das formas de olhar e imaginar o nosso mundo enquanto espaço turístico. Já no capítulo 15, “Os menus da vida”, debruça-se sobre como o turismo gastronómico alterou os nossos hábitos alimentares e a oferta culinária disponível no quotidiano, e ainda sobre a sua relação com o conceito sociológico de multiculturalismo. Em “Talvez um dia” (capítulo 16), D’Eramo sumariza e articula os vários tópicos abordados no livro e preconiza o esboroar da figura do turista - alguém que viaja por lazer - perante o colapso dos tempos distintos de trabalho/tempo livre, e o impacto das atuais possibilidades de mobilidade e de comunicação interpessoal instantânea na maneira como nos relacionamos com os espaços e com quem os habita, introduzindo ainda nessa discussão a figura do migrante - alguém que viaja em busca de melhores condições de vida. Em “Uma despedida”, o capítulo final do livro, o autor faz um balanço das reflexões que teceu e das leituras que as sustentam, chegando à conclusão de que “por detrás da crítica ao turismo não havia nada exceto uma recusa em olhar para si mesmo no espelho e reconhecer que este turista é simplesmente a perceção peculiar do mundo da nossa sociedade” (p. 239).

Livro inteligível e de acessível leitura, importa esclarecer que The World in a Selfie não é uma publicação científica: D’Eramo não operacionalizou os métodos das ciências sociais para recolher dados e a partir destes apurar reflexões e conclusões, tendo sim articulado uma extensa revisão bibliográfica ao campo dos estudos de turismo com diversas observações empíricas resultantes de várias viagens que ele próprio fez. Assim, e considerando este livro partes iguais de estudo e de crónica pessoal, o retrato longitudinal situado no presente que este autor nos propõe enraíza-se numa preocupação sociológica de compreender o lugar do turismo no mundo enquanto fenómeno social e cultural omnipresente no nosso quotidiano. Além deste aspeto destaca-se um outro, mais relevante do ponto de vista metodológico: a reflexividade que carateriza o seu autor enquanto agente de produção de conhecimento acerca do turismo que não se olvida que é, também ele próprio, turista. Em suma, The World in a Selfie afigura-se um marco teórico relevante e intelectualmente estimulante para quem estuda o turismo e para quem por este tópico nutre curiosidade.

Referência(s):

D’Eramo, Marco (2021), The World in a Selfie: An Inquiry into the Tourist Age. London: Verso Books, 282 pp. Tradução de Bethan Bowett-Jones e David Broder (ed. orig. 2017) [ Links ]

1Este trabalho resulta de uma investigação orientada pela Doutora Lígia Ferro (Departamento de Sociologia da Faculdade de Letras da Universidade do Porto) e coorientada pelo Doutor Frédéric Vidal (Universidade Autónoma de Lisboa), financiada pela Fundação para a Ciência e a Tecnologia através de uma Bolsa de Investigação para Doutoramento com a referência 2020.04757.BD.

2D’Eramo, Marco (2017), Il selfie del mondo: Indagine sull’età del turismo. Milano: Feltrinelli.

3Todas as traduções apresentadas são da responsabilidade do autor.

Recebido: 09 de Maio de 2022; Aceito: 14 de Outubro de 2022

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