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Media & Jornalismo

versão impressa ISSN 1645-5681versão On-line ISSN 2183-5462

Media & Jornalismo vol.21 no.39 Lisboa dez. 2021  Epub 31-Dez-2021

https://doi.org/10.14195/2183-5462_39_9 

Artigo

Leituras do jornalismo impresso no romance Ano da Morte de Ricardo Reis de José Saramago

Readings of print journalism in the novel The Year of the Death of Ricardo Reis by José Saramago

José Cândido Oliveira Martins1 
http://orcid.org/0000-0002-7970-8794

1 Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Filosofia a e Ciências Sociais - CEFH, Portugal. cmartins@ucp.pt


Resumo

A obra do escritor José Saramago alimenta-se fecundamente do jornalismo, sobretudo da imprensa escrita. Disso é exemplo eloquente o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, em que o protagonista lê quotidiana e obsessivamente a imprensa. Recriando o contexto histórico do Portugal de 1936, a composição romanesca saramaguiana demonstra como até uma imprensa manipulada e possível, por acção controladora da censura e da consequente falta de liberdade, é um espelho ou repositório informativo de uma época, sobretudo no ano crucial da propaganda do regime do Estado Novo, ao celebrar o X aniversário da Revolução de 1926.

Palavras-chave: imprensa; jornalismo; censura; romance; José Saramago

Abstract

The work of the writer José Saramago is richly nourished by journalism, especially the written press. An eloquent example of this is the novel O Ano da Morte de Ricardo Reis, in which the protagonist reads the press daily and obsessively. Recreating the historical context of Portugal in 1936, Saramago’s novel demonstrates how even a manipulated and possible press, through the controlled action of censorship and the consequent lack of freedom, is a mirror or repository of information of a time, especially in the crucial year of the propaganda of the Estado Novo regime, celebrating the tenth anniversary of the Revolution of 1926.

Keywords: press; journalism; censorship; novel; José Saramago

1. Jornalismo impresso no Portugal de 1936

À imagem de outros romances seus, a construção discursiva de O Ano da Morte de Ricardo Reis (1.ª ed., 1984), de José Saramago, apresenta-se densamente intertextual, com algumas particularidades interessantes a esse nível. Nessa rede de textos com grande função semântica que compõem a sua rica tessitura textual (cf. Camarero, 2008), a par dos múltiplos textos literários e artísticos citados, destacam-se, claramente, os textos jornalísticos. Com efeito, na dinâmica interdiscursiva e intercultural que anima esta tessitura romanesca, os jornais são amplamente convocados como imagem histórica e cultural de uma época, a par de outros textos, como os discursos de protagonistas políticos, também eles parcialmente reproduzidos através dos ecos que tiveram na imprensa.

De facto, no afã de conhecer uma parcela do passado, como ignorar as narrativas da imprensa quando se pretende representar uma determinada época histórica, tomando assim o jornalismo impresso enquanto reflexo desse tempo, sob a forma de discurso histórico singular? Afinal de contas, do ponto de vista cognitivo ou gnoseológico, o passado chega-nos sempre através de textos, aparece-nos através de uma “acessibilidade textualizada”, bem como as implicações decorrentes da sua formulação discursiva, ao nível das estratégias retóricas e compositivas (Hutcheon, 1991, pp. 152, 167 e 168).

No quadro delineado, a par de outras formas de captação do passado (memórias, relatos vários, documentos de arquivos, manuais escolares, etc.), a imprensa escrita é, inquestionavelmente, uma das grandes fontes textuais privilegiadas (arquivo vivo) para esse acesso, entre outras vozes e textos que captaram e interpretaram esse passado como continuada construção verbal1. Como sabemos, no entanto, e Saramago não o podia ignorar (desde logo por ter sido jornalista), não há representações neutras ou assépticas do passado, sem posturas interpretativas ou implicações ideológicas (cf. White, 1984). Partindo deste pressuposto essencial à poética ficcional pós-moderna, a escrita romanesca contemporânea, como nesta obra exemplar de Saramago, opera uma interpretação de interpretações prévias, num jogo textual complexo, assumidamente metatextual.

A questão de investigação que aqui nos move - lugar e significado da leitura da imprensa jornalística no romance saramaguiano - pode comportar vários desdobramentos possíveis, dentro do mesmo tópico central: que jornais lê Ricardo Reis para se inteirar da atualidade portuguesa e europeia? Por que lê Ricardo Reis a imprensa quotidianamente? Com que atitude crítica concretiza a leitura desses jornais diários? Por outras palavras, para José Saramago, afinal como pode e deve ser lida uma imprensa controlada pela censura? Enfim, como é feito o retrato geral da imprensa jornalística da época?

Em termos metodológicos, para responder à questão axial sugerida no título - significados do uso da imprensa numa criação romanesca -, sem pretensões de exaustividade, mas antes partindo de uma amostragem significativa, procederemos neste estudo do seguinte modo: i) faremos um levantamento das passagens romanescas expressivas que contêm referências expressas à imprensa da época, sobretudo nacional; ii) verificaremos o lugar dos hábitos de leitura da imprensa escrita a partir do comportamento das personagens; iii) comentaremos o uso de citações ou de referências a textos da imprensa no âmbito da mundividência crítica da voz narrativa; iv) analisaremos a tipologia de citações e de referências, consoante a sua postura ideológica face ao regime político (diferenças de posicionamento dos vários jornais); v) por fim, avaliaremos como as abundantes citações e referências à imprensa se mostram relevantes para a composição do texto romanesco, à luz do propósito de revisitação de um momento específico da História do Portugal contemporâneo. Neste intuito delimitado, não aqui é nosso propósito a análise detalhada , a nível micro-textual, do complexo processo citacional implicado, mais concretamente, a verificação de como são escolhidas e enxertadas múltiplas citações de notícias jornalísticas no texto romanesco saramaguiano, como já foi devidamente analisado por outros investigadores (Beijo, 2011). O labirinto textual desta criação romanesca de Saramago proporciona múltiplas abordagens, como enunciado, no sentido de analisarmos o modo como o jornalismo é colocado ao serviço da representação e trans-figuração da História recente (cf. Silva, 1989, p. 103 e ss.; Roani, 2003).

A referida operação pré-textual, ao nível genético da composição romanesca saramaguiana, depois objeto de cuidada seleção e de justificada incorporação literária, partiu do trabalho de recolha de notícias por José Saramago, a partir da consulta de vários jornais de final de 1935 e sobretudo de 1936, numa ampla estratégia de reconstrução epocal, não prescindindo assim do registo noticioso da imprensa da época, como efeito de real ou de ancoragem factual. Face ao sugerido, na ficção portuguesa moderna e contemporânea, a obra literária de Saramago e, em particular, o romance O Ano da Morte de Ricardo Reis, é, seguramente, uma das criações literárias atuais onde o jornalismo impresso tem maior representação e consequentes leituras críticas (cf. Alves, 2016).

Compreensivelmente, os jornais preenchem o quotidiano e dominam o espaço público da época, sem ignorar o menor papel da rádio, pelo que, obedecendo aos elementares princípios da verosimilhança - a “factualidade da ficção” (Seixo, 1999, p. 83)-, se justifica o interesse pela imprensa escrita por parte de um homem culto como Ricardo Reis, recém-regressado do Brasil e após muitos anos fora de Portugal: “(...) se houvesse por aí uns jornais de hoje, questão de me pôr em dia com a pátria enquanto não adormeço”. Ainda cansado da viagem, acabado de chegar a Lisboa, Reis não prescinde da leitura da imprensa, para se “pôr em dia com a pátria”, levando para o quarto de hotel vários “jornais cor de cinza, baços” (Saramago, 2016, p. 27). A leitura da imprensa diária era um traço definidor do cronótopo desta época social e cultural, nomeadamente quando se pensa em espaços públicos como cafés, restaurantes, hotéis, esplanadas ou praças - os jornais faziam parte integrante dessa paisagem urbana e dos hábitos dos cidadãos.

Em sequência próxima, numa das suas primeiras deambulações por Lisboa, “Quando choveu recolheu-se a um café, leu os jornais da tarde” (Saramago, 2016, p. 78). Sobretudo no hotel ou mais tarde na casa alugada no Alto de Santa Catarina, Reis tem o hábito quotidiano da leitura de jornais, que o acompanham naturalmente todos os seus dias, desde logo à hora das refeições: “(...) Confortavelmente reclinado no encosto do banco, de perna traçada, sentindo o leve ardor do sol nas pálpebras semicerradas, Ricardo Reis recebe no Alto de Santa Catarina as notícias do vasto mundo, acumula conhecimento e ciência” (Saramago, 2016, p. 309) - sejam notícias estrangeiras, sobre Mussolini (invasão da Etiópia); sejam sobre Portugal: um cortejo corporativo de trabalhadores do Norte, entre tantos outros temas noticiosos. Essa diversidade de notícias logo suscita o comentário irónico do sempre interventivo narrador (cf. Saramago, 2016, p. 310). Reis não deixa de, generosamente, partilhar os jornais lidos com os velhos reformados que passam os seus dias defronte da sua casa. Consabidamente, O Ano da Morte de Ricardo Reis recria ficcionalmente os últimos meses de vida de Ricardo Reis, regressado do Brasil, a pretexto da homenagem a Fernando Pessoa, falecido a 30 de novembro de 1935. Aliás, a imprensa portuguesa da época noticiou com relativo destaque o falecimento do poeta Fernando António Nogueira Pessoa, tal como citado em breves excertos no romance, nas sequências narrativas iniciais, não sem algumas considerações irónicas da voz narrativa, face ao modo diferenciado, incompleto ou repetido como foi noticiado esse óbito singular. Por outras palavras, na sequência do afirmado, ler jornais era a forma mais natural de saber das coisas do mundo: “Vai Ricardo Reis aos jornais, vai aonde sempre terá de ir quem das coisas do mundo passado quiser saber” (Saramago, 2016, p. 36), lê-se quando Reis acaba de se instalar no Hotel Bragança. O mesmo é dizer - passe o lugar-comum -, lia-se a imprensa para ler o mundo; ler os jornais era condição sine qua non para se estar informado, de acordo com o ethos jornalístico valorizador dos factos, fazendo indiscutível fé na verdade do trabalho de informação jornalística. Deste modo, como sugerido, era indispensável recorrer aos jornais para saber da inesperada morte de um poeta que pertencia a um círculo limitado do meio literário português de então, embora a voz narrativa não resista a um brevíssimo confronto de várias fontes noticiosas: “Causou dolorosa impressão nos círculos intelectuais a morte inesperada de Fernando Pessoa, o poeta do Orfeu (...). Não diz mais este jornal, outro diz doutra maneira o mesmo”. E a voz narrativa opera a citação: “Fernando Pessoa, o poeta extraordinário da Mensagem, poema de exaltação nacionalista, dos mais belos que se têm escrito, foi ontem a enterrar (...) pronto, já cá faltava o erro, a desatenção, o escrever por ouvir dizer, quando muito bem sabemos, nós, que Ricardo

Reis é, sim, este homem que está lendo o jornal (Saramago, 2016, p. 36).

Desde logo, como sugerido, na composição romanesca de Saramago, os jornais (sobretudo portugueses) ocupam um lugar relevante a vários níveis, e por razões mais ou menos consabidas. Primeiro, a nível pré-textual, as notícias constituíram uma fonte de informação histórico-referencial para o romancista evocar um variado conjunto de referências, sobre factos, figuras, discursos e ambientes. Sabemos por informação paratextual, como o romancista se deu ao trabalho de consultar a imprensa da época (de finais de 1935 e sobretudo de 1936); e, complementarmente, de anotar seletiva e cronologicamente essas informações numa agenda manuscrita, em jeito de background para a trama romanesca que iria construir. Aliás, podemos ter acesso a esses materiais pré-textuais, depositados na Biblioteca Nacional e acessíveis hoje através da BND, explorando assim o seu importante significado para compreensão da génese deste processo de escrita.

Em segundo lugar, embora sem panegíricos acríticos, a imprensa é perspetivada como a ímpar crónica do presente, biblioteca viva do passar dos dias, tornando-se uma fonte ou repositório excecional para se fazer a reconstituição de uma época, na pluralidade de vozes e de olhares sobre os mesmos eventos. Além disso, pormenor biográfico não despiciendo, nós sabemos do trabalho jornalístico que José Saramago desenvolveu durante anos, o que terá deixado marcas para a vida do escritor. E por tudo isto, e por outras razões mais tarde aduzidas, não espanta que poucos romances da ficção portuguesa possam ombrear com este livro de José Saramago no que respeita à omnipresença dos jornais em grande parte dos seus 19 capítulos, constituindo mesmo uma malha densa de notícias, carregada de significados na poética do romance. Convém relembrar que, no Portugal recriado ficcionalmente (1936), estávamos numa época da chamada cultura intervalar - na expressão de Fidelino de Figueiredo (1944) -, a finalizar o período entre as duas Guerras, em que se discutia amplamente o lugar e o papel do intelectual na vida pública. À exceção da telefonia (cf. Saramago, 2016, p. 116), os media eram representados principalmente pelos jornais diários de Lisboa e do Porto. Graças aos estudos de alguns investigadores (cf. França, 2010, p. 254-269), podemos saber quais eram então, fundamentalmente, os 6 matutinos e os 2 vespertinos, maioritariamente sediados em Lisboa: Diário de Notícias, O Século, Novidades, Diário da Manhã, República, Diário de Lisboa, Jornal do Comércio e das Colónias; a que se somam o Jornal de Notícias e O Comércio do Porto, sediados no Porto. E deste corpus, já de si algo restrito, as mais frequentes notícias incorporadas na narrativa saramaguiana pertencem a um número restrito de jornais.

Como seria de esperar, até pelas considerações reflexivas da voz narrativa, sabemos quais as posições desses jornais face ao regime do Estado Novo. Assim, ora temos os jornais da situação - desde o Diário da Manhã, órgão oficial da União Nacional e, por conseguinte, voz oficiosa do governo; até ao Novidades, diário católico e conservador; ora os jornais anti-situação, de orientação mais republicana e liberal, como o Diário de Lisboa (de Joaquim Manso), tendo como colaboradores nomes tão diversos como João de Barros ou Almada Negreiros. Há jornalistas cujo labor de escrita vai além dos jornais, colando-se ao regime vigente. No Hotel Bragança, Reis recebe uma sugestão de leitura por parte do pai de Marcenda, de um livro muito formativo - Conspiração -, “um livro útil, de leitura fácil, e que pode abrir os olhos a muita gente (...) escreveu-o um jornalista patriota, nacionalista, um Tomé Vieira” (Saramago, 2016, p. 156).

Em todo o caso, a alguns destes órgãos da imprensa diária generalista, a escrita romanesca de Saramago ainda adiciona outros títulos, como o semanário humorístico O Sempre Fixe, com o caricaturista Stuart Carvalhais. A que se acrescenta, secundariamente, um outro título da imprensa estrangeira, como o francês Le Jour, por exemplo. Deste modo, em Portugal de 1936, e com alguns matizes, no ano X da Revolução de 1926, estes e outros jornais da “imprensa possível” dividiam-se em dois campos: de um lado, os jornais patriotas e nacionalistas, defensores do Estado Novo; e, do outro, os jornais mais críticos, os anti-situacionistas. Ainda que indirectamente, cada órgão de informação posicionava-se face à situação vigente, nomeadamente nesse ano de 1936, em que a ativa máquina de propaganda de António Ferro promovia os eventos desse aniversário muito caro à reafirmação político-ideológica do Estado Novo.

Neste equilíbrio nem sempre fácil, e com a legislação vigente em matéria de liberdade de imprensa, uns títulos corriam bem mais perigos do que outros, como facilmente se adivinha. Com todas as condicionantes referidas, em Lisboa e no Portugal de 1936, a imprensa jornalística ocupava um lugar central no muito controlado espaço público português. As notícias de Portugal e do mundo chegavam sobretudo pelos jornais diários. E essa rotina da leitura dos jornais ou das gazetas começava então com o trabalho de distribuição, feito desde logo pelos ardinas com os seus populares pregões: “Agora só falta a gazeta, mas até essa cá virá ter. Está Ricardo Reis no quarto, ouve o pregão do ardina, Olha o Século, olha o Notícias, abre rapidamente a janela, e aí vem o jornal pelos ares (...) (Saramago, 2016, pp. 281-282).

Numa palavra, o recurso à imprensa da época dá-nos o quotidiano da vida lisboeta, de 1935-36, no seu enquadramento português e europeu. Os jornais informam sobre a vida política e social da época, desde os grandes acontecimentos como a atuação política de Francisco Franco, Benito Mussolini, Adolf Hitler e Oliveira Salazar (cf. Medina, 2000); bem como sobre a realização de eventos diversos, como o desenvolvimento da Guerra Civil espanhola ou a passagem por Lisboa de um dirigível alemão. Pelo menos aparentemente, a imprensa espelha a vida quotidiana; e ao nível da opinião pública, expressa certa “voz corrente” (Saramago, 2016, p. 173) do que se dizia às claras, exceto o que se falava em surdina e a medo, num país dominado pelo “mau tempo”. Ora isto mesmo indicia o que a voz narrativa de Saramago pretende expressar: a imprensa da época tem de ser lida muito criticamente - uns jornais informavam o que era possível; outros, os que lhes mandavam dizer. Deste modo, como veremos, há que ler com grande reserva e distanciamento a verdade ou verdades veiculadas pela imprensa de 1936. Porém, até nessa constatação se pode enfatizar a tese de que não é possível ou recomendável fazer a História do contemporâneo ignorando a imprensa.

2. O flâneur Ricardo Reis e a leitura das gazetas

Depois de um relance panorâmico de natureza mais sociológica, política e cultural sobre a imprensa portuguesa em 1936, cabe um olhar mais estético e narrativo. Para além do afirmado antes, as notícias dos jornais contribuem também, decisivamente, para a verosimilhança do universo narrativo, num jogo que a arte da ficção decidiu construir: estes factos aconteceram assim, como a imprensa noticiou; e se os jornais noticiaram, esses eventos ocorreram, independentemente das leituras diversas que suscitaram. Esse efeito de verdade é reforçado sempre que a imprensa fala de acontecimentos e figuras histórico-referenciais. Do ponto de vista discursivo e mesmo argumentativo pode-se afirmar que a imprensa constitui um argumento de autoridade (auctoritas).

Deste modo, a imprensa constitui uma das estratégias para caucionar a verdade da história ficcional. Isto remete-nos para um trabalho de seleção, adaptação e inclusão de excertos de notícias no tecido da matéria narrada. Como se citou antes, para saber das “coisas do mundo”, ou o “que do mundo resta”, tinha de se ir obrigatoriamente aos jornais; mas logo na mesma passagem se acrescentava, de seguida, o elemento decisivo da criação literária - “o outro resto é parte de invenção” (Saramago, 2016, p. 36, itálico nosso), isto é, o poder transformador da arte da ficção. Partindo do discurso jornalístico e histórico, a escrita romanesca opera uma metaficção historiográfica (cf. Hutcheon, 1991), na medida em que se propõe reler interpretativamente o passado. Assim, os reinterpretados relatos da imprensa estão ao serviço de técnicas de representação ficcional, no sentido de reescrever esse passado, revelando aspetos subentendidos e lacunas, mas também manipulações ou silêncios, nunca sendo inocente ou desprovido de significado todo o processo de seleção e valorização de determinadas notícias, em detrimento de outras. Mesmo os excertos inseridos dos discursos políticos do Presidente do Conselho ou de outros governantes (através da técnica da citação, por exemplo) na trama narrativa, já antes passaram pelo filtro noticioso dos jornais.

O termo é crucial (invenção), pois nesta elaboração do universo ficcional deparamo-nos com uma enredada construção textual em que o discurso jornalístico foi assimilado e integrado no discurso literário, num processo de densa intertextualidade não-literária. Através de técnicas diversas - citação, referência, montagem, etc. -, deparamo-nos com uma variada “gramática” citacional, em que o discurso jornalístico integra uma pluralidade sinfónica de vozes (dialogismo), sob a forma de tecido textual complexo. À imagem de um anúncio caracterizado no texto, também este universo romanesco assim criado, com os textos da imprensa, em registo de polifonia textual (Reyes, 1994), se apresenta como “um labirinto, um novelo, uma teia” (Saramago, 2016: 98). Tem como macro objectivo revisitar o passado e proporcionar uma re-visão da História, num momento muito particular da sua evolução, desnudando assim algumas das narrativas propagandísticas do regime de então.

Médico e poeta, homem culto, flâneur que se passeia aleatoriamente pelo espaço urbano de Lisboa, sobrevoando a realidade sem se comprometer com quase nada, Ricardo Reis tem a necessidade e a rotina de ler diariamente os jornais, mesmo sabendo que o trabalho jornalístico dessa imprensa era controlado pela atuante máquina da censura, tal como já estudado historicamente (Franco, 1993; Gomes, 2006). Apesar de tudo, a imprensa era a forma básica de saber notícias de Portugal e do mundo, pelo que não estranha a cena simbólica em que as gazetas do dia surgem a acompanhar o quotidiano pequeno-almoço: “Olhe, Ricardo, como nós estávamos a falar de jornais, chegou-me a curiosidade de saber as últimas notícias, será uma maneira de acabarmos o serão, Há cinco meses que você nada sabe do mundo, muita coisa não vai perceber (...) (Saramago, 2016, p. 329) Ler a imprensa ao iniciar o dia, para estar a par da informação quotidiana. Só que este mesmo Ricardo Reis, mau grado o consumo de notícias, não dá o passo esperado

- tomar uma posição político-ideológica, comprometer-se publicamente, agir em lugar de continuar o espectador passivo de sempre. Muito menos mostra uma aguda consciência crítica e cívica do vasto processo de censura imposto à imprensa nesse período (cf. Garcia et al., 2017), tirando daí Reis alguma ilação pragmática ou um discurso mais crítico sobre a liberdade de imprensa, suspensa por longo período (cf. Sousa, 1984).

O mesmo acontece em outras passagens similares da rotina do protagonista - “ler no jornal da manhã, ao café com leite, a notícia (...)” (Saramago, 2016, p. 56). Insistese assim que a leitura dos jornais era imprescindível para o conhecimento do “mundo em geral” (função essencialmente informativa); ocasionalmente, e com algum cómico à mistura, um jornal também poderia servir para afastar companhias incómodas, como o gerente do hotel, Salvador: “(...) mas Ricardo Reis já tinha aberto um dos jornais, passara todo aquele dia em ignorância do que acontecera no mundo, não que por inclinação fosse leitor assíduo, pelo contrário, fatigavam-no as páginas grandes e as prosas derramadas (...) o jornal, por falar do mundo em geral” (Saramago, 2016, p. 55)2.

O estratagema romanesco é simples, mas nem por isso menos eficaz: há momentos em que a voz narrativa se remete para a sombra, porque a cena é eloquente - Reis lê a imprensa matutina para o fantasmático Pessoa, que, tendo falecido há alguns meses, mantém algum interesse na atualidade informativa; e, sobretudo, demonstra agudo sentido crítico, sob a forma de ironia cínica, muito mais do que o neutro Ricardo Reis:

Ricardo Reis bebeu meia chávena, depois abriu um dos jornais, perguntou, Você sabia que o Hitler fez anos, quarenta e sete, Não acho que a notícia seja importante, Porque não é alemão, se o fosse seria menos desdenhoso, E que mais, Diz aqui que passou revista a trinta e três mil soldados, num ambiente de veneração quase religiosa, palavras textuais, se quer fazer uma ideia ouça só esta passagem do discurso que Goebbels fez na ocasião, Leia lá, Quando Hitler fala é como se a abóbada de um templo se fechasse sobre a cabeça do povo alemão, Caramba, muito poético (Saramago, 2016, p. 330).

Das múltiplas cenas em que Ricardo Reis nos é descrito a ler jornais, decorrem alguns traços caracterizadores do protagonista, como referido: ele lê a imprensa para estar informado, como é expectável num intelectual; ao mesmo tempo, esta atividade de leitura preenche o tempo livre de um homem ocioso, destituído de um projeto de vida - lê para ocupar o tempo. Como se isto não fosse pouco, Reis lê essa imprensa de uma forma genericamente passiva e acrítica, aliás, de acordo com a sua filosofia de vida, enquanto sereno espectador do mundo, fiel ao perfil que do heterónimo traçou Fernando Pessoa (cf. epígrafe inicial do romance).

No passar monótono dos dias, nomeadamente quando procura no jornalismo uma informação concreta, há momentos em que o protagonista se sente enfastiado de ler os jornais, num misto de cansaço e de melancolia - “Já desespera, folheia desanimadamente os jornais, que tudo lhe dizem menos o que quer” (Saramago, 2016, p. 235). A formulação não está isenta de ambiguidade: o fastio ou desespero de Reis deve-se ao facto de esperar um noticiário de índole mais cultural e/ou menos propagandística? Mesmo não o afirmando expressamente, desejava uma informação mais isenta de manipulações? Em todo o caso, não se pode falar numa apatia total do protagonista, pois, como intelectual atento - mas politicamente inativo -, há situações em que o narcísico Ricardo Reis indicia, com algum cinismo, estar a par do que a imprensa noticia sobre a política portuguesa e o modo questionável como o faz. Quando um seu interlocutor, entusiasmado adepto da política de restauração e de fomento de obras públicas, lhe lança uma questão condicionada, de rasgado elogio da notável política de obras públicas do Estado Novo, o médico-poeta responde-lhe, ambiguamente, que apenas vai lendo o que os jornais publicam, o que é também uma forma irónica e ambígua de, definitivamente, não se comprometer e, desse modo, de não entrar num debate político:

Não há comparação possível entre o Portugal que deixou ao partir para o Rio de Janeiro, e o Portugal que veio encontrar agora, bem sei que voltou há pouco tempo, mas, se tem andado por aí, a olhar com olhos de ver, é impossível que não se tenha apercebido das grandes transformações, o aumento da riqueza nacional, a disciplina, a doutrina coerente e patriótica, o respeito das outras nações pela pátria lusitana, sua gesta, sua secular história e seu império, Não tenho visto muito, respondeu Ricardo Reis, mas estou a par do que os jornais dizem. Ah, claro, os jornais, devem ser lidos, mas não chega, é preciso ver com os próprios olhos, as estradas, os portos, as escolas, as obras públicas em geral. (Saramago, 2016, p. 155)

De facto, se a informação jornalística é ostensivamente condicionada pela consabida falta de liberdade de imprensa, como o próprio Reis bem sabe, a sua resposta revela-se eloquentemente irónica, num círculo vicioso: a política do Estado Novo é louvável porque os jornais o dizem... E os jornais destacam quotidianamente a ação e obras do regime, porque o crivo da censura os condiciona a tal versão da realidade. Com este nível de controlo e de manipulação, podiam os jornais transmitir a verdade do que se passava na sociedade portuguesa, exprimir o perfil coletivo dos portugueses? Esse era também um propósito de Ricardo Reis: “Minuciosamente, lia os jornais para encontrar guias, fios, traços de um desenho, feições de rosto português, não para delinear um retrato do país” (Saramago, 2016, p. 96). Porque, enquanto homem inteligente, sabia que esse “retrato” seria evidentemente falseado, desde logo no propagandeado apoio unânime dos portugueses ao regime.

Por outras palavras, confirma-se o padrão segundo o qual, na ausência de uma imprensa livre, não é possível ver nos jornais a verdade dos acontecimentos, mas antes a verdade única que o regime impõe como tal, sem espaço para qualquer contraditório ou outro tipo de pronunciamento crítico. Esta evidência levanta a questão axial - com tais condicionamentos, são os jornais dignos de que tipo de crédito? O tópico tem tanta pertinência que surge numa das conversas entre Reis e Pessoa, como veremos adiante.

3. Vozes narrativas e críticas: revisão da História

Contrariando a postura de quase neutralidade de Ricardo Reis - ou seja, em permanente contraponto crítico e mesmo cínico com a atitude apática do médico-poeta, reitere-se, que persiste na sua postura de espectador passivo do mundo, na sua congénita ataraxia (cf. Martins, 2020) -, cabe ostensivamente à voz narrativa comentar, refletir e condenar, assertivamente, a situação política portuguesa, a começar pela decretada censura que se abatia sobre a imprensa, espelho da falta de liberdades, de expressão e de imprensa, situação que já vinha de trás (cf. Baptista & Sousa, 2020, p. 161-178 e 79-203). Além disso, corretivamente, a narrativa saramaguiana também incorpora acontecimentos históricos de que a imprensa da época não falou (ou não pode noticiar), o que se revela muito significativo também - há ausências ou silêncios eloquentes. Nesse sentido, podem os jornais não espelhar a realidade em toda a sua complexidade, pelo que se impõe uma ponderação crítica, no sentido de uma necessária re-visão da História. Afinal de contas, dadas as circunstâncias muito singulares de funcionamento da liberdade de imprensa, constata-se que afinal há mais mundo do que aquele que a imprensa relata, tantas vezes de forma condicionada ou mesmo distorcida. De facto, não sendo a única voz crítica, são múltiplas as ocasiões em que o narrador saramaguiano aproveita para, de modo muito interventivo, dizer o que pensa sobre este Portugal cinzento e amordaçado de 1935-36. Um dos primeiros alvos da frontal investida do narrador é justamente a vigência da censura, fruto do condicionamento da Lei de Imprensa vigente na época, na sequência de legislação publicada em abril de 1933 - a imprensa estava coagida a satisfazer o famoso artigo 20.º da recente Constituição da República (de 1933), estipulando que “leis especiais regulariam o exercício da liberdade de expressão, do pensamento, do ensino, de reunião e de associação” (citado em França, 2010, p. 266). O próprio Presidente do Conselho, Dr. Oliveira Salazar, declara em 1935, ser “inconcebível a liberdade de imprensa” (citado em França, 2010, p. 266). Regulamentando esta área, o decreto-lei de 1933 exarava que a censura “tem por fim impedir a perversão da opinião pública na sua função de força social e deverá ser exercida por forma a defendê-la de todos os fatores que a desorientem contra a Verdade, a Justiça e a Moral, a boa administração e o bem comum e a evitar que sejam atacados os princípios fundamentais da organização da sociedade” (citado em França, 2010, pp. 266-267).

Recorde-se, aliás, que 1936 viu também nascer a União Nacional e a Mocidade Portuguesa, organizações relevantes do Estado Novo, na sua rede capilar a nível da nação; ao mesmo tempo que se cria a Colónia Penal do Tarrafal, em Cabo Verde, ilha de Santiago, em abril desse ano, à imagem dos campos de concentração. Igualmente nesta altura é criada legislação sobre a imposição do “livro único”. Também já tinha sido criada a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado (PVDE), futura PIDE. Estavam assim lançados alguns dos grandes pilares do regime ditatorial do Estado Novo.

Em 28 de maio de 1936, tem lugar em Braga a celebração festiva do X Aniversário da Revolução (ou do golpe, consoante a visão dos factos) de 28 de maio de 1926, em que o Dr. Salazar enuncia as “grandes certezas da Revolução Nacional”, com os seus valores basilares (Deus, Pátria, Família, Trabalho), absolutamente necessários a uma renovada era de restauração e de engrandecimento de Portugal - tudo pela Nação, nada contra a Nação (cf. Rodrigues, 2019, p. 20 e ss.)3. Neste clima, assiste-se a um agravamento do existente regime de censura prévia, com mais consequências para os jornais diários. É neste contexto que devemos reler várias passagens da obra saramaguiana, onde a voz narrativa endereça ataques a um regime político que tenta branquear a realidade através de uma imprensa controlada pelos “zelosos olhares” dos censores, frequentemente militares na reserva. Tudo o que não transmite uma imagem positiva do regime é riscado pelo atento lápis da censura, para que não exista nesta narrativa jornalística do quotidiano:

Lesse o governo com atenção suficiente os jornais sobre os quais todas as manhãs, tardes e madrugadas mandou passar zelosos olhares, peneirando outros conselhos e opiniões, e veria quão fácil é resolver o problema da fome portuguesa, tanto a aguda como a crónica (...). / Diz-se, dizem-no os jornais, quer por sua própria convicção, sem recado mandado, quer porque alguém lhes guiou a mão, se não foi suficiente sugerir e insinuar, escrevem os jornais, em estilo de tetralogia, que, sobre a derrocada dos grandes Estados, o português, o nosso, afirmará a sua extraordinária força e a inteligência refletida dos homens que o dirigem. (Saramago, 2016, p. 307, 93).

Curiosamente, ou não, o discurso saramaguiano não usa o termo e conceito de “censura”; mas é a essa realidade - omnipresente e com evidentes consequências a vários níveis - que se refere em múltiplas passagens do romance, mesmo quando se particulariza a imprensa estrangeira que, também ela “comprada” ou condicionada ideologicamente (também pelo atuante braço da propaganda do regime), traça um retrato panegírico do regime português. Nesses casos, mais uma vez, funcionaria o reforçado argumento de autoridade - se a imprensa estrangeira o diz, é porque é verdade: “A situação do país merece à imprensa estrangeira referências entusiásticas, cita-se a nossa política financeira como modelo (...) por todo o país continuam as obras de fomento que empregam milhares de operários, dia a dia os jornais inserem diplomas governativos no sentido de debelar a crise (...)” (Saramago, 2016, p. 162). E logo em passo seguinte, com manifesta ironia:

os grandes periódicos de fama internacional enviam até nós os seus redatores categorizados a fim de colher elementos para conhecer o segredo da nossa vitória, o chefe do governo é, enfim, arrancado à sua pertinaz humildade, ao seu recolhimento de rebelde a reclames, e projetado em colunas de reportagem, através do mundo, a sua figura atinge as culminâncias, e as suas doutrinas transformam-se em apostolados. (Saramago, 2016, p. 162).

Casos há em que a reflexão sobre o estado da controlada imprensa portuguesa surge através de outras vozes, num saudável confronto polifónico, umas vozes mais favoráveis ao regime, outras mais críticas, sejam os frequentadores do Hotel Bragança, sejam mesmo Fernando Pessoa e Ricardo Reis, num dos seus vários diálogos, desnudando-se uma vez mais o processo de “encomenda” de artigos, plantados nessa referida imprensa estrangeira:

Tal qual, mas, voltando ao Salazar, quem diz muito bem dele é a imprensa estrangeira, Ora, são artigos encomendados pela propaganda, pagos com o dinheiro do contribuinte, lembro-me de ouvir dizer, Mas olhe que a imprensa de cá também se derrete em louvações, pega-se num jornal e fica-se logo a saber que este povo português é o mais próspero e feliz da terra (...). (Saramago, 2016, p. 328)

Em outra passagem, desmonta-se, jocosa e criticamente, a atitude da imprensa portuguesa fortemente condicionada pela Censura e orquestrada pela máquina propagandística do regime. Esta imprensa diz, genericamente, o que o Poder quer que ela diga - no caso, a glorificação mitológica do líder e Presidente do Conselho, o sábio professor coimbrão e esperado salvador da Pátria, com o seu competente e indiscutível ministério governamental. Como seria de esperar, pela mão da eficaz propaganda de António Ferro - o secretariado da Propaganda Nacional (SPN)fora criado em 1933 -, a venerada iconologia de Salazar também atravessa fronteiras, como comprovado pela imprensa estrangeira, o que “confere” maior auctoritas, no registo crítico e cínico da voz narrativa (“Tem toda a razão o autor do artigo”):

Dizem também os jornais, de cá, que uma grande parte do país tem colhido os melhores e mais abundantes frutos de uma administração e ordem pública modelares, e se tal declaração for tomada como vitupério, uma vez que se trata de elogio em boca própria, leia-se aquele jornal de Genebra, Suíça, que longamente discorre e em francês, o que maior autoridade lhe confere, sobre o ditador de Portugal, já sobredito, chamando-nos de afortunadíssimos por termos no poder um sábio. (Saramago, 2016, p. 94)

Por vezes, Reis recebe sugestões de leitura, que por si denunciam uma relação entre estratos sociais e temas de interesse4 - é o caso da notícia de um crime passional na Mouraria, desmentindo também o estereótipo do país de brandos costumes:

(...) Uma cena de sangue, senhor doutor, aquilo é uma gente de mil diabos, não querem saber da vida, por dá cá aquela palha esfaqueiam-se sem dó nem piedade, até a polícia se teme deles, aparece só no fim para apanhar as canas, quer ouvir, diz aqui que (...). (...) diz o jornal que tinha havido uma história de conto do vigário mal repartido. (Saramago, 2016, p. 169)

Ao passear em torno da estátua do Adamastor, no Alto de Santa Catarina, Reis é visto como figura misteriosa pelos acomodados velhos que ali se sentam, lendo “o Século dos bodos”, de compra e leitura partilhada. Porém, na perceção de Reis, os velhos “concentrarem-se na leitura das notícias, que o gordo há de fazer em voz alta para benefício do seu próprio entendimento e do magro analfabeto, hesitando nas palavras difíceis, que ainda assim não são em excesso”; logo se acrescentando as razões: “à uma porque os jornalistas nunca se esquecem de que escrevem para o povo, às duas porque sabem muito bem para que povo escrevem.” (Saramago, 2016, p. 270) A atitude de Reis, mas sobretudo a focalização mais interventiva da voz saramaguiana, também nos conduzem a uma questão basilar - a de refletir sobre o que o trabalho jornalístico apresenta então como verdade: “(...) tenho que acreditar que é verdade o que eles me dizem, um jornal não pode mentir, seria o maior pecado do mundo” (Saramago, 2016, p. 463). Também neste aspeto Lídia Martins se mostra uma voz mais crítica e sensata que o culto Reis, contrariando as crenças deste e mostrando-lhe outras perspetivas e opiniões: (...) o meu irmão diz é que não se deve fazer sempre fé no que os jornais escrevem (...)” (Saramago, 2016, pp. 462-463). No fim de contas, a (aparente) ingenuidade do poeta de gosto clássico não deixa, et pour cause, de ser uma enorme provocação para o leitor - pode uma pessoa superiormente formada ser destituída de sentido crítico na leitura dos jornais? O mesmo é dizer, pode-se acreditar acriticamente na verdade dos jornais, independentemente das circunstâncias em que são produzidos? “Portugal é a obra de Deus através de muitas gerações de santos e heróis” (Saramago, 2016, p. 309) - lê-se nesta zelosa imprensa, que, genericamente, funciona ao serviço da estratégia de propaganda do regime ditatorial, em que a História pátria é objeto de culto venerador e, ao mesmo tempo, forma de caução ou de legitimação dos predestinados líderes que governam Portugal no presente.

Face ao exposto, podemos concluir esta análise crítica, salientando algumas ideias fundamentais: i) na génese deste romance de José Saramago, a consulta da imprensa da época (1935-36) teve um lugar fundamental, quer em termos de fonte de informação, quer ao nível da credibilidade da narração (verosimilhança e efeito de real); ii) na organização da sua estrutura romanesca, a voz narrativa saramaguiana recorre a várias técnicas de montagem de textos retirados da imprensa da época - da citação ipsis verbis até à referência breve ou alusão; iii) por fim, aspeto fundamental, o uso da imprensa da época proporciona ao escritor uma base informativa crucial para proceder a uma re-visão da História, com o recurso frequente à ironia, à sátira e à crítica social, sobretudo quando desmonta a face oculta pela censura e pela propaganda do regime. Nesta re-visão crítica da História, o jornalismo apresenta-se efetivamente como uma forma de desmitificação de uma visão glorificadora do Estado Novo, contrapondo-se a ideia de um Portugal futuro, onde emergirá uma sociedade livre, servida por uma imprensa livre. Neste sentido, com as referidas reservas quanto à possibilidade manipulação, o romance constitui um panegírico do lugar e função da imprensa. Ao mesmo tempo, esta é a forma saramaguiana de fazer a ponte entre o estético e o político, sob a forma de discurso simultaneamente revisionista e utópico (cf. Burghard, 2014, p. 17). Numa palavra, como ilustrado em O Ano da Morte de Ricardo Reis, com todas as particularidades históricas e políticas apontadas, a imprensa espelha exemplarmente a organização social imposta pelo Estado Novo, quer em 1935-36, quer ao longo dos 48 anos do regime, até 25 de Abril de 1974.

Financiamento

Estudo desenvolvido no âmbito do Projeto Estratégico do Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos (CEFH) UIDB/00683/2020, financiado pela Fundação para a Ciência e Tecnologia (FCT).

Referências bibliográficas

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Notas

1 Como nos recorda Linda Hutcheon (1991, p. 173), há uma diversidade de materiais ou de fontes da metaficção historiográfica e o seu trabalho de interminável revisão da História: “Tudo - desde os quadrinhos e os contos de fadas até aos almanaques e aos jornais - fornece intertextos culturalmente importantes para a metaficção historiográfica. (...) Uma das principais é a forma dos diversos meios de comunicação, por cujo intermédio se ressalta o conceito da disparidade entre «notícias» e «realidade» ou «verdade»”. Mesmo os textos da imprensa apresentam as suas versões linguísticas e organizadas da realidade coeva, versões tantas vezes condicionadas e contaminadas por ideologias dominantes.

2 Com alguma dose de ironia, a voz narrativa ainda acrescenta outra função pragmática da leitura dos jornais - a de proporcionarem tema de conversa entre as pessoas: “(...) para isso é que os jornais servem, guardam-se umas tantas notícias na memória para alimento das conversas, fazem-no os velhos do Alto de Santa Catarina, fazem-no Ricardo Reis e Lídia, à falta de um silêncio que fosse melhor que as palavras” (Saramago, 2016, p. 387).

3 Do conhecido discurso do Presidente do Conselho, acentuando a ideia de restauração nacional, face à anarquia do passado: “Às almas dilaceradas pela dúvida e pelo negativismo, procurámos restituir o conforto das grandes certezas. Não discutimos Deus e a virtude; não discutimos a Pátria e a sua História; não discutimos a Autoridade e o seu prestígio; não discutimos a Família e a sua moral; não discutimos a glória do Trabalho e o seu dever” (citado em França, 2010, p. 72, itálico nosso). As comemorações do X Aniversário da Revolução prolongaram-se por outras cidades, culminando em Lisboa com a exposição documental “Dez anos de Revolução Nacional”. Acrescente-se ainda o filme de António Lopes Ribeiro, A Revolução de Maio (1937), tendo António Ferro participado no argumento, também ele convocado para a ficção saramaguiana

4 Também os pobres velhos que se reúnem junto do Adamastor mostram uma predileção pelas notícias de crimes, embora não tenham dinheiro para comprar diariamente o jornal, além de evidenciarem alguma dificuldade para compreender todo o vocabulário jornalístico - “diz-se que o crime foi crapuloso, palavra que desacredita irremediavelmente qualquer delito”, observa jocosamente a voz narrativa, sem deixar ainda de observar que na carteira de um dos actores do crime havia um retrato do “ditador todo fraternal” (Saramago, 2016, p. 270).

Recebido: 30 de Março de 2021; Aceito: 04 de Outubro de 2021

José Cândido de Oliveira Martins é professor de Ciências da Comunicação da Universidade Católica Portuguesa. Investigador do Centro de Estudos Filosóficos e Humanísticos (CEFH). Editor responsável do portal Plataforma 9. Ciência ID: 1211-B8DD-625B. Morada institucional: Universidade Católica Portuguesa, Praça da Faculdade, 1, 4710-297 Braga - Portugal

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