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Revista Lusófona de Estudos Culturais (RLEC)/Lusophone Journal of Cultural Studies (LJCS)

versión impresa ISSN 2184-0458versión On-line ISSN 2183-0886

RLEC/LJCS vol.8 no.2 Braga dic. 2021  Epub 01-Mayo-2023

https://doi.org/10.21814/rlec.3363 

Varia

“O Povo Desliga, Vai à Procura do Fado” - A Rádio e a Resistência Fadista ao Estado Novo na Década de 1930

José Ricardo Carvalheiro1 
http://orcid.org/0000-0003-3917-5230

1Departamento de Comunicação, Filosofia e Política, Faculdade de Artes e Letras, Universidade da Beira Interior, Covilhã, Portugal


Resumo

Muito longe da consagração atual e mesmo antes da sua domesticação pelo salazarismo, o fado atravessou fases dilemáticas da sua existência. Entre elas, estão os tempos iniciais da sua mediatização, em particular, as complexas articulações com a rádio na década de 1930, com o Estado Novo e os preconceitos de classe a tentarem ostracizar o fado ou, pelo menos, travar a legitimação nacional da cultura popular urbana. As tensões que já antes rodeavam o fado renovaram-se e agudizaram-se face ao contexto simultâneo de estabilização da ditadura e de implantação da rádio em Portugal, colocando o novo meio de difusão sonora no centro das lutas simbólicas em torno da “canção nacional”. Envolvendo dilemas entre o estigma e a legitimação fadista, entre a sua origem e a propagação, entre a difusão pública e o controlo estético ou moral, constitui-se uma zona de articulação da rádio com o fado onde diversos atores sociais se posicionaram, com diferentes objetivos e estratégias, e em que se jogaram questões de programação, discursividade e status social. O objetivo deste artigo é identificar esse conjunto de articulações ao longo dos anos 30, tentando perceber de que maneira a formação do campo radiofónico, com as suas várias estações e matizes, se tornou palco e participante num processo cultural que, em alguns aspetos, já o precedia. A pesquisa baseia-se na imprensa coeva, especificamente nos jornais de fado (Guitarra de Portugal; Canção do Sul) e nos periódicos dedicados à rádio (Rádio Semanal; Rádio Revista; Boletim da Emissora Nacional; Rádio Nacional).

Palavras-chave: história da rádio; fado; Estado Novo; década de 1930; imprensa

Abstract

Far from its current consecration and even before its domestication by Salazarism, fado went through dilemmatic phases throughout its existence. Among them are the early times of its mediatization, particularly the complex relationship with radio in the 1930s, with the Estado Novo and class prejudices attempting to ostracize fado or, at least, to stop the national legitimization of urban popular culture. The tensions that already surrounded fado were renewed and sharpened in the simultaneous context of the stabilization of the dictatorship and the implementation of radio in Portugal, placing the new means of sound diffusion in the centre of symbolic struggles around the “national song”. Involving dilemmas between stigma and fado legitimation, between its origin and propagation, between public diffusion and aesthetic or moral control, a connection between radio and fado was made, where several social actors positioned themselves, with different goals and strategies, and in which questions of programming, discursiveness and social status were tackled. This article aims to identify this set of interactions throughout the 1930s. It tries to understand how the establishment of the radio industry, with its various stations and nuances, became a stage and participant in a cultural process that, in some aspects, already preceded it. The research is based on contemporary press publications, specifically fado newspapers (Guitarra de Portugal, Canção do Sul) and magazines focused on radio (Rádio Semanal, Rádio Revista, Boletim da Emissora Nacional, Rádio Nacional).

Keywords: radio history; fado; Estado Novo; 1930s; press

Ao contrário da deferência com que hoje se considera o fado enquanto parte do património cultural português, no passado este género musical atravessou períodos de intensa luta simbólica no espaço público, articulando-se com tensões sociais e projetos políticos. Época especialmente significativa foi a que correspondeu às primeiras etapas da implantação da rádio, período que se iniciou na década de 1920, mas que incidiu especialmente nos anos 30 - com a criação e consolidação de estações emissoras, a popularização da escuta radiofónica e a atenção da imprensa sobre o novo meio.

Estudos cruciais para a história do fado no século XX (Brito, 1999; Carvalho, 1994; Nery, 2012; Sucena, 1993) mencionam de forma destacada o aparecimento da rádio, sublinhando o seu caráter de mecanismo divulgador e difusor, que alterou o quadro de atividade da música, proporcionou um alargamento de público para o fado e contribuiu para a profissionalização dos fadistas (Carvalho, 1994, pp. 84, 94).

Nestas obras salienta-se que muitos postos emissores usavam o fado como estratégia de captação de audiência popular, assim como se refere a ambivalência da rádio oficial do Estado Novo (Nery, 2012, pp. 254, 257). Em estudos históricos sobre a rádio, há igualmente menções ao fado, especialmente na relação com as pequenas estações de Lisboa (R. Santos, 2005), mas também com a rádio estatal (Ribeiro, 2005).

A nosso ver, a articulação entre o fado e a rádio na fase da sua implantação merece um grau de detalhe em que se salientem três eixos: a variedade de modalidades que servem à difusão do fado através da rádio; o funcionamento desta como plataforma para discursos sobre o fado; e o desenvolvimento da própria rádio como propulsor de discussão acerca do fado e de lutas simbólicas em torno dele.

Estas articulações permitem perceber a rádio dos anos 30 como ápice onde confluem duas forças contraditórias que vêm das décadas anteriores: por um lado, a gradual expansão do fado para além dos limites originais dos bairros e classes populares lisboetas e a sua conversão em espetáculo e produto de consumo; por outro, a não aceitação, por parte de importantes setores das classes dominantes, que um fenómeno oriundo da cultura pobre urbana, e com ligações à marginalidade social, pudesse tornar-se uma expressão musical reconhecida no espaço público e legitimada a nível nacional.

Para averiguarmos os cruzamentos entre fado e rádio, centramo-nos em dois segmentos da imprensa da década de 1930, a fadista e a radiofónica, compulsando as referências à rádio nos jornais de fado e as alusões ao fado nos jornais de rádio. No primeiro caso focamo-nos nos quinzenários Canção do Sul e Guitarra de Portugal, que cobrem todo o período. No segmento radiofónico, recorremos ao Boletim da Emissora Nacional (1935-36), à revista Rádio Nacional, que lhe sucedeu como órgão da rádio estatal a partir de 1937, e às publicações independentes Rádio Semanal (1934-40) e Rádio Revista (1935-36).

Primeiras Mediatizações

Em Portugal, a rádio nasce praticamente em simultâneo com a ditadura que conduzirá ao Estado Novo e é lícito considerar que o período da sua implantação se pro- longa até aos anos 40, década em que se massifica a posse doméstica da “telefonia” (só então superando os 100.000 aparelhos em território nacional). Pode, por sua vez, dividir-se este período em quatro fases, tendo em conta alguns marcos da história radiofónica que irão fazer-se sentir na relação com o fado:

  1. 1924 até cerca de 1930, que corresponde à primeira geração de pequenos postos, onde a radiodifusão obedece à lógica de concerto;

  2. desde cerca de 1930 até 1935, em que novas estações iniciam verdadeiramente a estruturação do campo radiofónico, com emissões regulares, criação de programas e diversificação de géneros;

  3. 1935-1941, quando o campo é redesenhado com o funcionamento definitivo de um ator estatal, a Emissora Nacional;

  4. 1941-1950, quando a Emissora é chefiada pelo diretor do Secretariado de Propaganda Nacional, António Ferro, e, portanto, instrumento direto para a “política do espírito” (etapa que não cabe neste texto).

Antes da rádio, o fado era já uma prática musical com um certo número de mediações que alimentavam a sua expansão. Era o caso dos registos discográficos que desde o período 1904-1915 visavam um público de classe média, assim como outros assomos de uma indústria cultural em torno do fado, que se traduziam em partituras para piano e canto e também na venda de brochuras com letras, produtos dirigidos a consumidores escolarizados e à recriação caseira de canções do fado. Note-se também o papel intermediador que, para este público, foi desempenhado pelo teatro de revista. Desde finais do século XIX que este género teatral incluía fados, aligeirando-lhes as formas e fazendo-os acompanhar por orquestras, de modo a aproximá-lo das classes médias lisboetas e a integrá-lo nos seus consumos culturais. Joaquim Pais de Brito (1999) realça este estrato social que, embora “impreciso nos seus contornos”, se vai tornando relevante na relação com o fado e que é composto por uma pequena e média burguesia com meios para frequentar espetáculos e para ir adquirindo as sucessivas mediações técnicas, como a grafonola (p. 28).

Mas, quando surge a rádio, para lá de tabernas e botequins que nos bairros pobres constituíam o habitat natural da prática fadista há décadas, também as camadas intermédias de Lisboa já não contactavam com o fado só em salões e teatros. Para este público, vinha-se formando, desde o início do século, uma rede de cafés e cervejarias com oferta de atuações fadistas. Aqueles a quem a condição social e as preocupações de respeitabilidade impediam de frequentar as tabernas de Alfama ou da Mouraria, podiam agora desfrutar do fado em ambientes onde se mantinha a compostura (Nery, 2012, p. 219), alguns dos quais em zonas nobres da cidade.

Desde a viragem do século que a capital era marcada por um acelerado crescimento e se intensificava a diferenciação social. A população operária atraída pela expansão do porto e que habitava as zonas de precariedade contrastava cada vez mais com o bem-estar ordenado das avenidas e partes novas da cidade, mas também se cruzava com a pequena burguesia e os empregados dos serviços, os lojistas e os caixeiros, que em alguns bairros coexistiam com as classes mais baixas, mas que aspiravam a distinguir-se delas e professavam outros padrões morais (Rosas, 2018).

É à luz destes contrastes sociais e conflitos simbólicos que se devem ler as classificações estigmatizantes que do fado fazem António Arroio ou Albino Forjaz Sampaio na década de 1910 e que em meados dos anos 20 regressam em frequentes polémicas nas páginas do quinzenário Guitarra de Portugal, dirigido pelo poeta do fado Linhares Barbosa. A citação de artigos publicados por “detratores” noutros jornais (incluindo alguns da “província”) e os contra-ataques por parte das hostes fadistas ocupam muitas edições de 1925. As dissensões também podiam ser interiores ao próprio campo fadista, como sucedeu em dezembro de 1926 a propósito da opereta Mouraria, ficando claro nos artigos do Canção do Sul que uma preocupação então crucial por parte do género e dos seus praticantes era a procura de respeitabilidade, para a qual amiúde se invocavam antigos contactos históricos com a aristocracia.

Uma compilação de críticas externas ao fado surgiria no volume publicado, dias antes do golpe militar que instaurou a ditadura, pelo intelectual portuense José Maciel Fortes (1926), para quem o fado é a canção “predileta das meretrizes e ( … ) das mais baixas camadas sociais” (p. 99) e “não passa de uma cantilena de vadios, um hino ao crime, uma ode ao vício” (p. 71). Este discurso, que desqualifica o fado em termos simultaneamente morais, classistas e artísticos, indica o tipo de hostilidade existente no momento em que a radiodifusão dá os primeiros passos.

Mas a recusa em aceitar o fado como “canção nacional” passa nesse momento a assentar também em razões histórico-raciais - apontando o fado como derivado de uma “forma cancional negróide” (Fortes, 1926, p. 45) -, numa tentativa de deslegitimação consonante com as teses fascistas então emergentes. As críticas de Fortes (1926) são dirigidas ao acolhimento do género nas classes vistas como respeitáveis, bem como ao comércio das casas editoras como via de propagação. Como moda lisboeta que se disseminava progressivamente pelo país, o fado ainda não estaria, porém, na alma do povo de todas as províncias, argumentava o autor.

É justamente em meados dessa década que se inicia a primeira geração da rádio com emissões regulares de pequenos postos. De acordo com Rogério Santos (2005), neste período prevalece a transmissão de concertos de música clássica, com cantores e instrumentistas no estúdio ou com “concertos de grafonola”, por vezes conjugando a música erudita com momentos de poesia, de humor ou de outros géneros musicais. Trata-se de um modelo tendencialmente erudito de rádio, posto em prática por estações cujos proprietários pertenciam a meios empresariais ou militares (R. Santos, 2005, pp. 95-96). O arranque fazia-se sob uma conceção que encarava a rádio também como “poderoso factor de educação”1 (Neves, 1925, como citado em R. Santos, 2005, p. 67).

Nesta fase, o fado surge esporadicamente no meio de algumas transmissões. Uma das primeiras terá sido uma atuação de Alfredo Marceneiro acompanhado de guitarra e viola, logo em março de 1925, no posto P1AB, dentro de um programa de concerto dominado pela música clássica2 (R. Santos, 2005, pp. 229-230). Através da imprensa diária, Rogério Santos (2005) identificou várias ocasiões em que se fez a radiodifusão de sessões fadistas nos anos seguintes: uma noite de fados organizada pelo Diário de Notícias em abril de 1927 e transmitida pelo posto CT1AA; a transmissão de fados e guitarradas a partir do Café Mondego, em 1928, pelo posto CT1BM; um concerto organizado, em janeiro de 1929, pelo violista Mário Marques e o guitarrista João Fernandes, com fados da sua autoria e de Armandinho, cantados por Ercília Costa, igualmente difundido pelo CT1AA (pp. 242-243).

Se bem que o fado fosse muito minoritário na intermitente difusão radiofónica desta fase, parecem ter emergido desde logo várias formas de ligação entre o fado e a rádio. Essa articulação estava, porém, num momento embrionário, tal como a própria rádio. É isso que sugere o número 44 do Notícias Ilustrado, em 14 de abril de 1929, inteiramente dedicado a um “grande inquérito sobre o fado”, onde a mediação do disco e da “gramofonia” está muito mais presente do que a “TSF”. Nos jornais fadistas são praticamente inexistentes as referências à rádio até final dos anos 20.

O que sobressai, todavia, nesta fase é a participação, diminuta, mas aparentemente insólita, de uma forma musical popular no seio de uma conceção erudita e educativa da rádio, o que só por si complica uma leitura linear da relação que as questões de status e classe social tinham neste momento com o fado.

1930-1935: O Fado e a Estruturação do Campo Radiofónico

O princípio dos anos 30 é apontado como o período em que nasce uma segunda geração de rádios e onde se transita do modelo de temporada musical para uma estrutura propriamente radiofónica de programas e rubricas, com emissões mais regulares e uma diversificação de géneros (R. Santos, 2005). Vários destes pequenos postos emissores aparecem por iniciativa de comerciantes de Lisboa, que estão, portanto, mais próximos das classes populares, acumulando funções diretivas e técnicas nas rádios e tentando estabelecer ligações mais permanentes com colaboradores.

É também na primeira metade desta década que o fado conquista uma presença radiofónica mais frequente, de que são exemplo a Rádio Colonial (o CT1AA, sobrevivente da fase anterior), ao promover “a título experimental”, logo em 1930, emissões a cargo do violista Amadeu Ramin (Sucena, 1993, p. 201), e a Rádio Luso, que desde 1932 se carateriza pela difusão de fado e por exprimir posições fadófilas (Neves, 2017, p. 20).

A imprensa coeva indica que igualmente na Rádio Graça, criada em 1932, há emissões de fado, pelo menos desde o início de 19333. E também em relação à Rádio Condes há referências de atuações fadistas, cuja data inicial não é possível precisar, mas que são anteriores a 1935 (Canção do Sul, 16 de junho de 1935). Existe, portanto, um conjunto de pequenos postos emissores de Lisboa, com um restrito âmbito geográfico de difusão, onde o fado se faz ouvir na primeira metade dos anos 30. Mas ele também penetra numa estação com outros meios e ligada à cúpula do regime, o Rádio Club Português (RCP), de cujas emissões de fados se encontra os primeiros registos na imprensa em 1934 (Guitarra de Portugal, 31 de maio de 1934).

É difícil perceber, nas fontes consultadas, qual a real frequência do fado nos postos referidos, mas do que não há dúvidas é que as relações se estreitam, sendo um sinal disso a pluralização de formas através das quais a rádio surge articulada com o fado. Nestas incluem-se várias modalidades de difusão além do disco. Por um lado, há as transmissões a partir de locais onde o fado se exibe, os quais podem, aliás, integrar o trunfo radiofónico na sua promoção junto do público (como acontece nos anúncios em que o Café dos Anjos se vangloria de “irradiar pela TSF”; Guitarra de Portugal, 14 de novembro de 1933). Por outro, desenvolvem-se as atuações fadistas em estúdio, algumas das quais acabam por se enquadrar em acordos estabelecidos com os jornais de fado, mas que de uma forma geral parecem inserir-se numa lógica de profissionalização dos fadistas (iniciada em 1927 com o decreto que os obriga a ter cartão de artista para atuarem em público)4, que tentam incorporar os postos radiofónicos nos seus circuitos de atuação e como meio de divulgação.

Há outros sinais da crescente articulação, como as letras de fado com alusões à rádio, raras mas curiosas, de que são exemplo umas quadras de Álvaro Fialho que usam a radiofonia como metáfora:

terno rádio transmiti/ Do meu coração ao teu/ ( … )/ Uma onda hertziana/ Todo o espaço percorreu/ Numa correria insana/ Do meu coração ao teu/ (… )/ Se foi boa a recepção/ Se o rádio não se perdeu/ Porque é que teu coração/ Ainda não respondeu? (Guitarra de Portugal, 30 de novembro de 1930)

E também se somam as campanhas publicitárias com que as marcas de aparelhos apelam ao público fadófilo e que incluem a utilização de rostos como os de Berta Cardoso e Ercília Costa, nomes cimeiros do panorama fadista de então. Estes anúncios proliferam em 1934 e são mais um indício de que os apreciadores de fado não se restringiam às classes mais baixas, para quem a aquisição de uma telefonia era nesta altura inacessível. A rádio estatal, que nesse mesmo ano começava as emissões experimentais, iria lançar em 1935 uma campanha de apoio à compra de aparelhos a preços reduzidos, mas sem conseguir massificar a curto prazo o acesso a uma rádio idealizada como instrumento de propaganda do regime5.

O que o novo contexto radiofónico parece ter provocado, simultaneamente com a estabilização da ditadura na sua forma de Estado Novo a partir de 1933, foi um renovado e virulento ímpeto nos discursos contra o fado, onde emerge de maneira muito clara a sua radiodifusão como problema. Também neste aspeto se evidencia o ano de 1934, quando vários artigos do Diário de Notícias têm grande eco e reação na imprensa fadista, que não deixa de identificar a motivação das críticas: “o nó górdio gira à volta da TSF ( … ) pena foi que só o fado lhe ferisse os tímpanos”6 (Canção do Sul, 20 de agosto de 1934, p. 1). Não terá sido por acaso que os ataques se intensificaram a partir de abril, momento em que a Emissora Nacional começa a transmitir, ainda de modo experimental.

Nesta “campanha” contra o fado, toma igualmente um papel de destaque o diário Revolução Nacional, onde se lamenta “ouvir em diversas emissoras portuguesas (mesmo a nacional) a dona Maria dos Quintalinhos e a dona Micas a cantarem o fado da desavergonhada” (“Relice Nacional”, Guitarra de Portugal, 15 de setembro de 1934, p. 11). Jornal próximo do nacional-sindicalismo, movimento de índole fascista que Salazar acabava de neutralizar como oposição interna ao regime, a ação do Revolução Nacional sugere que várias fações do jogo de equilíbrios em que se tornou o salazarismo também declinavam acerca do fado as suas próprias ideologias7. Nesta fase, uma das principais linhas discursivas é ainda a insistência em associar o fado com a prostituição e a marginalidade dos meandros lisboetas, como forma de deslegitimar a sua radiodifusão e opor-se à sua expansão nacional.

O politizar da conexão entre rádio e fado é, portanto, mais um eixo das suas articulações que se aprofundam na primeira metade dos anos 30. Mas uma vertente acrescida dessa mesma articulação reside no facto de também a rádio se ter tornado uma plata forma do combate político em torno do fado.

Como é natural, os discursos contra o fado tentaram usar a própria rádio como meio para a sua crítica, mas para tal não serviam as pequenas estações que se dedicavam a difundir aquele género musical. Por isso, toma-se o RCP como base possível para a condenação do fado, através desse género radiofónico, então notável, que era a “palestra”. É o que acontece em maio de 1934, quando o RCP emite uma palestra caraterizada como de “injúrias e ofensas para o fado” pelo Guitarra de Portugal, que por sua vez reage através do próprio RCP, organizando, em associação com o diário O Século e uma marca de aparelhos, duas audições de “resposta” em junho, onde atuam Maria Albertina, Maria do Carmo e Filipe Pinto (Guitarra de Portugal, 31 de maio de 1934, p. 7 e 30 de julho de 1934, p. 2). Uma das letras cantadas por Maria Albertina era de publicidade à marca patrocinadora, outro sinal das vias que o profissionalismo fadista ensaiava nas suas ar ticulações com a rádio. A posição ambivalente do RCP, entre os compromissos com o regime e o cariz comercial que visava expandir a audiência, ter-lhe-á proporcionado ser palco desta disputa.

Vemos, portanto, que outra das articulações que se desenvolvem nesta fase entre fado e rádio é o facto de a reação fadista usar também as estações emissoras, em ações entendidas pelos próprios meios fadófilos como política de “propaganda” em prol do fado. Esta disposição não começa com a polémica no RCP, pois já antes o campo radiofónico vinha sendo visto por setores do fado como espaço de afirmação num contexto de luta simbólica. É exemplo disso, uma notícia do Canção do Sul no início de 1933:

aparecem novas forças com que o fado se sente remoçar e pronto a defrontar a onda insana (dos ataques de ódio). Agora foram os Leais Fadistas ( … ) realizando uma sessão de fados na Rádio Graça, tão bem recebida pelos ouvintes que os pedidos telefónicos foram constantes. (Canção do Sul, 1 de fevereiro de 1933, p. 1)

A defesa e promoção do fado no interior do próprio campo radiofónico envolvem também a difusão de palestras, como as que o jornalista e poeta Armando Neves proferiu na Rádio Luso em 1932 (Neves, 2017, p. 20). Mas é em 1934 que a relação entre os dois campos se estrutura de forma mais institucional, não apenas com as múltiplas iniciativas da própria imprensa fadista na promoção de audições radiofónicas8 , como também com o estabelecer de ligações privilegiadas entre jornais e postos emissores, nomeadamente do Canção do Sul com a Rádio Graça e a Rádio Condes, e do Guitarra de Portugal com a Rádio Luso, para onde Linhares Barbosa foi convidado a dirigir a “secção de fado” (Guitarra de Portugal, 8 de dezembro de 1934, p. 3).

Independentemente da simpatia que o fado pudesse ir granjeando nas classes médias, o que unia os fadistas às pequenas rádios locais e ao seu público dos bairros po pulares era em grande medida um mundo socialmente coincidente. O proprietário da Rádio Graça, Américo Santos, que tratava da técnica, dos programas e da locução, era um modesto guarda-livros, próximo, portanto, das profissões de origem dos Ídolos do Fado enumeradas por Victor A. Machado (1937): escriturário, tipógrafo, estofador, serralheiro mecânico, ferroviário, eletricista, empregado de comércio, pedreiro. Nas fadistas, havia costureiras e trabalhadoras fabris, mas à maioria nem era atribuída profissão. Este contexto social é frequentemente associado pelo discurso fadófilo às desconsiderações de que o género é alvo: se o fado não é artisticamente reconhecido é “porque é pobre, geralmente disseminado entre os filhos do povo” (Canção do Sul, 16 de junho de 1934, p. 3).

Neste sentido, a radiodifusão do fado corresponde à projeção das classes populares urbanas no espaço público. Não se trata apenas do alastramento a outras regiões do país, movimento em que a rádio faz parte de um sistema difusor mais amplo9. O que também estaria em causa com o acesso dos fadistas às rádios era uma dignificação simbólica de figuras “do povo” e da cultura popular urbana, dignificação tanto mais ampla quanto mais prestigiado fosse o estatuto da rádio e o âmbito da difusão.

Após 1935: A Emissora e a Canção Nacional

Quando, em agosto de 1935, inicia a suas emissões regulares sob a direção de Henrique Galvão, a Emissora Nacional tem um programa ideológico que inclui a educação do “bom gosto” musical e que visa “exercer uma ação profunda” sobretudo nas “classes operárias e populares”10. A estratégia montada - e constrangida por reduzidos meios financeiros - provocou, porém, fricções na própria Emissora e levou a acusações de vulgarização cultural dirigidas ao diretor (Ribeiro, 2005, p. 119), tensões que remetiam, afinal, para “a questão central do binómio entre a alta cultura e a cultura popular” (Moreira, 2012, p. 64) que esteve no cerne da própria ideologia do Estado Novo.

Hostilizado por setores do regime e excluído pelo Secretariado de Propaganda Nacional da “alma” portuguesa, o fado estava ideologicamente condicionado na rádio oficial. Mas passa a ter um espaço regular a partir de novembro, quando começam a fazer-se transmissões de 20 minutos em direto do Retiro da Severa, nas noites de domingo e quinta-feira (Boletim da Emissora Nacional, n.º 4, novembro de 1935). Nesse mês, o fado ocupou 2,6% do tempo de emissão musical (1 hora e 37 minutos no total), contra 6 horas de músicas regionais (dados publicados pelo Boletim da Emissora Nacional). A programação da Emissora concentrava-se na alta cultura (mais de 80% da música) e mostrava que a estratégia para se “aproximar das classes populares com bons elementos de cultura musical” (Boletim da Emissora Nacional, agosto de 1935, p. 100) consistia sobretudo em oferecer-lhes formas cultas, por vezes sob roupagens mais acessíveis.

O predomínio destas formas culturais fazia da Emissora um espaço simbólico marcadamente das classes altas. A participação feminina, por exemplo, era protagonizada por atrizes de teatro erudito, poetisas, cantoras líricas e instrumentistas (além de palestrantes que abordavam “temas femininos”), parecendo-se, aliás, com um semelhante caráter classista da geração de postos anteriores a 1930.

Neste cenário, as transmissões de fado entendem-se sobretudo como tentativa pragmática de cooptar as classes populares, com Henrique Galvão a intuir um caráter dialógico da rádio e as reações possíveis do público. Para o diretor da Emissora, o público popular não aceitaria “programas exclusivamente eruditos cuja matéria esteja fora do alcance da sua sensibilidade ( … ) e menos os aceitará radiodifundidos tendo a possibilidade de des locar o botão do seu aparelho e procurar nos postos particulares a música ligeira de que gosta” (Galvão, como citado em Moreira, 2012, p. 64)11. Mas a introdução do fado também se entende como consciência de que o seu público já tocava as classes médias, pois Galvão aludia a proprietários de aparelhos que reivindicavam a sua escuta em virtude dos 6 escudos que pagavam de taxa (Boletim da Emissora Nacional, 1 de agosto de 1935, p. 98).

Em todo o caso, as transmissões na Emissora fornecem um novo contexto radiofónico onde se inscrevem dois aspetos a notar. Em primeiro lugar, conferir aos fadistas um espaço regular na rádio oficial, e mais ainda dentro de um modelo radiofónico de cultura legítima, não podia deixar de ser visto também como uma forma de legitimação do fado e, portanto, continha um potencial simbólico considerável. Em segundo lugar, e como recusa dessa mesma legitimação, exacerbaram-se as intervenções hostis ao fado a partir dos núcleos intelectuais do Estado Novo e, mais uma vez, o espaço radiofónico se tornou palco das suas próprias lutas a este propósito.

Face à nova circunstância que é a existência de uma emissora estatal, o discurso dos intelectuais do regime não é totalmente homogéneo, nomeadamente no que respeita à solução para o problema da radiodifusão fadista. Uma corrente, de que faz parte o jornalista Augusto da Costa (1936), oriundo do integralismo lusitano12, defende simplesmente a sua proibição:

estamos convencidos de que não tardará que todos os postos emissores, do Estado ou particulares, estejam inteiramente ao serviço da Nação, só podendo transmitir, tanto em palavras como em música, aquilo que realmente sirva a Nação. Desaparece o fado das emissões radiofónicas? Assim é preciso. (Boletim da Emissora Nacional, n.º 7, p. 90)

Trata-se de defender a imposição do poder do Estado ao conjunto dos postos radiofónicos em nome de uma política nacional autoritária, e não apenas à Emissora Nacional, mas não se pode dissociar tal posição, em inícios de 1936, do papel que a rádio oficial havia assumido na difusão do fado. Não era primeira vez, aliás, que vozes integralistas propunham simplesmente extirpar o fado das práticas culturais portuguesas13.

Outra corrente pode ser identificada na série de oito palestras proferidas por Luiz Moita sobre o fado, entre abril e agosto de 1936, na própria Emissora Nacional. Intelectual do círculo de António Ferro e, portanto, partidário da construção de um determinado cânone de música popular de inspiração rural como parte da “política do espírito” estado-novista, Moita dedica a palestra de 7 de julho à questão da rádio. Após descrever a mistura de gritos, fumo e fado (“lá está o aparelhozinho aceso” ; Moita, 1936, p. 165) que em Lisboa emana das tabernas para a rua, conclui a sua tese:

não vou afirmar, pois a muitos pareceria loucura, que se promova, nas estações emissoras, a brusca supressão do fado. ( … ) Convenho que se dê aos idólatras, - últimos abencerragens dum culto pagão sem dia de amanhã, a faculdade de dividirem o seu “caldo de cultura” ( … ) Mas devíamos ficar por aí… Em caso algum conviria permitir, repito, que se “entornasse o caldo”. ( … ) Acaso não merecerá o povo de Lisboa que o ajudem a tirar do seu marasmo psíquico, em vez de porem a rádio ao serviço da sua mesma estagnação? (Moita, 1936, pp. 168-171)

Trata-se, neste caso, de defender um acantonamento do fado, a circunscrição do seu “vírus” (termo do próprio Moita, 1936), estratégia que admite alguma tolerância para com o campo radiofónico, mas cujo propósito seria naturalmente uma pedagógica restrição das suas emissões.

Além da obsessão “moralista” dos censores14 e para lá das diferenças entre estas duas correntes, o que se revela é que ambas viam como insuficiente a neutralização política do fado que desde o início da ditadura vinha sendo feita através da censura ideológica às letras da linha “subversiva” e revolucionária que existira antes e durante a Primeira República (Nery, 2012, p. 231) e em que o fado fora veículo de expressão do proletariado emergente e de denúncia das desigualdades sociais (Brito, 1999, p. 34). O que estava em causa agora não eram questões político-ideológicas que a censura das letras pudesse resolver, mas sim o género cultural em si, numa repulsa classista que emana de descrições como as de Moita (1936) e que se dirige ao fado como forma simbólica das classes populares urbanas.

Nesse momento, porém, o fado estava presente em todo o espetro radiofónico de Lisboa e, como vimos, as hostes fadistas tinham já incorporado a rádio como meio de difusão e propaganda, com as suas próprias séries de palestras, organização de emissões e alianças entre a imprensa e postos emissores. Assim, o grande impacto que as palestras de Luiz Moita tiveram no campo do fado pôde ser retrucado não só nos jornais, nem apenas nos pequenos postos “populares”, mas também através da própria Emissora Nacional no espaço de interpelação do público fadófilo que eram as transmissões do Retiro da Severa.

Na emissão de 6 de maio, os fadistas responderam às primeiras palestras de Luiz Moita com as suas próprias armas, em versos de fado radiodifundidos. Entre eles constou um fado intitulado mesmo “Oito Conferências”, cantado por Rosa Maria, com autoria de Francisco Radamanto, que glosava, também ele, os limites da persuasão erudita do próprio Moita sobre o público popular: “talvez mesmo não consiga/ ser pelo povo escuta- do…/ Porque ao ouvi-lo desliga,/ vai à procura do Fado!” (Guitarra de Portugal, 1936, p. 5). Dizer que o fado estava implantado na rádio não significa, porém, afirmar que ele atingira um estatuto respeitável, uma vez que a sua estigmatização seria ainda brandida durante muito tempo nos discursos contra o género, e o estigma era por vezes incorporado pelos próprios meios populares15.

A conquista de respeitabilidade seria um processo lento, mas não há dúvidas de que em meados dos anos 30 a presença de fadistas nas rádios era vista simultaneamente como um fator e um sinal do caminho já percorrido. Num balanço dos seus 13 anos de existência, o Guitarra de Portugal traçava a evolução: “à mulher não era permitido, por uma questão de decência, que cantasse o fado. ( … ) E hoje? O fadista é um artista, vai a toda a parte ( … ) e até a TSF o procura” (Guitarra de Portugal, 1935, p. 2). Sinais da gradual legitimação fadista no campo radiofónico podem também entrever-se no Rádio Semanal, suplemento do Jornal do Comércio e das Colónias que nas suas edições privilegia a cultura erudita e começa por ignorar completamente o fado, mas que em 1936 anuncia as palestras de Luiz Moita sem ecoar as posições deste e, pelo contrário, faz a capa com uma foto de Maria do Carmo, “a conhecida e apreciada cantadeira” responsável pelas emissões da Rádio Peninsular (Rádio Semanal, 1936, p. 1).

O processo de legitimação sentido pelos próprios fadistas aparece crescentemente ligado à sua radiodifusão e ao suporte da opinião pública, como exprimia a cantadeira Alcídia Rodrigues em entrevista:

(pergunta) se um dia proibissem, como querem os detractores, o fado pela rádio, concordava? (Resposta) Isso seria a morte dos postos emissores e da própria Emissora Nacional. De um dia para o outro, 90% dos senfilistas poriam de parte os seus aparelhos. (Guitarra de Portugal, 8 de dezembro, 1935, p. 2)

Torna-se difícil, porém, ter hoje uma ideia precisa da presença quantitativa que o fado tinha nas rádios ao longo dessa década. Luiz Moita, em 1936, fala de “estações emissoras, em Lisboa, onde quase outra coisa não se faz além de sucessivas emissões de fados” (p. 163), mas deve ter-se em conta que uma tal descrição se insere num discurso destinado a combater propalados excessos fadistas. Sabemos, contudo, que a duração total das emissões radiofónicas era, nesse ano, de apenas 2 horas diárias em cada um dos pequenos postos16. Nos primeiros meses de 1936, só uma dessas rádios tem um programa periódico de fados na programação: a Rádio Peninsular, que transmi tia diretamente, nas tardes de domingo, a aludida emissão organizada pela fadista Maria do Carmo, naquele que terá sido o primeiro programa regular de fado em estúdio17. Os restantes postos anunciavam, quase unicamente, programas de “música variada”, em relação aos quais se pode apenas especular sobre a parte ocupada por fado. Sabemos, por outro lado, que na Emissora Nacional, o tempo ocupado pelas transmissões fadis tas ao longo de 1935 e 1936 nunca excedeu os 6% da parte musical, e que os diretos do Retiro da Severa correspondiam a 40 minutos por semana.

Mas, independentemente da periodicidade e do tempo de emissão, é muito claro que a presença do fado nas rádios se consolidou na segunda metade dos anos 30, pois além das já referidas, encontram-se mais tarde alusões a outras emissões regulares, em regra organizadas ou dirigidas por fadistas: a Rádio Graça transmitiu sessões organizadas por António Montoia (Coração do Sul, 16 de agosto de 1936); a Rádio Sonora teve emissões dirigidas pela cantadeira Raquel de Sousa (Machado, 1937, p. 188); Margarida Pereira teve a seu cargo o programa “Fados e Guitarradas” lançado pelo RCP em setembro de 193718; e finalmente Maria Teresa de Noronha inaugurou em 1938 um programa quinzenal de fados a partir dos estúdios da Emissora Nacional, que coexistiu com as transmissões do Retiro da Severa até 193919. Assim, o processo de estruturação da rádio (que na primeira metade dos anos 30 multiplicara as emissões de fado numa base ocasional) passou, após 1935, a estruturar também a presença fadista com programas e transmissões regulares na generalidade do espetro radiofónico.

Do lado da receção não é possível ter uma noção rigorosa acerca da escuta de fado, mas há indícios de que a procura do género era efetivamente uma prática arreigada em meios populares. Uma reportagem da Rádio Revista relata uma visita a três tabernas para inquirir sobre as preferências radiofónicas:

o taberneiro (todos os taberneiros, afinal) se há posto emissor a transmitir fados, não quer outro ( … ). Numa taberna não é possível falar com uma pessoa só ( … ) Todos à uma, ou quase todos, votam pelo fado ( … ). A maior parte deles conhece os nomes de quase todos os cantadores e cantadoras e discute-lhes acaloradamente os méritos. (Rádio Revista, 1 de janeiro de 1936, p. 7)

Numa série de histórias de vida recolhidas em Alfama, surgem também memórias da escuta intensiva de fado pela rádio: “a gente, quando começou a rádio cá em Portugal, levava todo o dia a ouvir o Manuel Monteiro e a Hermínia Silva. Era quinhentas vezes”20(Costa & Guerreiro, 1984, p. 110). A partir de uma outra posição de classe, encontra-se, porém, um público que reproduz críticas análogas às dos intelectuais do regime: “inadmissível numa emissora de categoria, a transmissão das desgarradas do Retiro”21 (Rádio Revista, 1 de janeiro de 1936, p. 6).

Para Concluir - Rumo aos Anos 40

A 1.ª década e meia de radiodifusão em Portugal (de 1924 a 1940) representou para o fado um momento dilemático da sua história, pois nela se agudizaram as tensões culturais em redor deste género popular urbano e das inéditas possibilidades para a sua legitimação pública abertas pelo primeiro meio de comunicação social não contido pelos limites da iliteracia e que se prestava a uma experiência sonora aproximada às formas populares na sua difusão e prática quotidiana.

Não deixa, porém, de ser assinalável que, num contexto ditatorial, o fado tenha acabado por resistir a uma ofensiva ideológica de setores notáveis do regime e por se impor e afirmar no espaço público. Afirmação essa, feita também a contragosto da moral burguesa, que além de tentar impedir um reconhecimento simbólico da “cultura dos pobres”, também combatia o próprio ethos fadista no que ele apresentava de contrário quer ao projeto ideológico estado-novista de regeneração vigorosa da nação, quer aos valores do mérito e da iniciativa individual empreendedora em que assenta a hegemonia da burguesia, absolutamente adversa ao gosto pelo melodrama que preenchia boa parte dos fados com as desventuras e infelicidades das camadas desfavorecidas.

A rádio então emergente foi palco, ao mesmo tempo, da ofensiva contra o fado e da resistência fadista, mas esta não foi uma resistência ideológica ao regime, e sim uma resistência cultural, ligada a formas de expressão popular, mas também a dinâmicas de afirmação profissional de um meio artístico que trilha crescentemente as vias do espetáculo e da mediatização.

O processo da consolidação fadista na rádio acabou por se fazer em três fases, grosso modo correspondentes a:

  1. segunda metade dos anos 20, com inclusão episódica de fado em programas de concerto radiofónico e primeiras transmissões ocasionais de sessões fadistas;

  2. inícios da década de 30, com emergência de emissões em estúdio e alargamento da difusão através do disco, numa conjuntura favorecida por pequenos postos próximos dos meios populares lisboetas;

  3. de meados da década de 30 até ao seu final, com uma presença radiofónica regular e programas estruturados de fado também nas estações de difusão nacional

Não por acaso, estas mesmas décadas de 1920 e 30 são o período em que se dá o “salto definidor” do fado enquanto género autónomo nas suas caraterísticas musicais assentes numa base harmónica sobre a qual a voz pode “estilar” (Carvalho, 1994, p. 96). Ou seja, o fado fixa o carácter improvisador da sua performance ao nível dos tempos e ornamentos vocais, abandonando o improviso das letras que era típico das desgarradas comuns até ao primeiro quartel do século XX e que a censura agora reprime (Brito, 1999, pp. 34-35), o que também responde a um crescente contexto de indústria musical e regulação profissional, mas guarda uma dimensão performativa suficiente para que a rádio, especialmente com as transmissões diretas, também possa mediar algum casticismo fadista.

Tudo isto indica que o crucial processo de definição artística que o fado sofre nesta fase se vai fazendo em articulação com o campo radiofónico. Mas, como vimos, a articulação entre rádio e fado não se deu simplesmente através dos espaços musicais e teve um importante elemento nos discursos acerca do fado, muitos deles desenvolvidos na rádio e/ou a propósito da rádio. Esta vem prolongar e aprofundar a discussão que já vinha da imprensa, mas tornando-se a própria rádio motivação e objeto das lutas simbólicas em torno do fado, com o campo fadófilo a usar como elemento legitimador a opinião pública que se sustenta na própria escuta radiofónica.

Apesar da consolidação radiofónica que o fado alcançou, as tentativas continuadas da sua deslegitimação e de travagem da sua expansão, quer territorial quer interclassista, não vão parar no final dos anos 30. Com a posse de António Ferro como diretor da Emissora Nacional, a partir de 1941 vai decorrer uma década dedicada pelo Secretariado de Propaganda Nacional à simultânea contenção e suavização do fado, no essencial dando continuidade institucional ao discurso crítico que pugnava pelo seu acantonamento.

Os anos 40 merecem a sua análise específica, mas alguns dos seus traços decorrem da vontade do regime já patente na fase anterior e levarão a um recuo da presença radiofónica do fado em prol da música ligeira e de outros géneros, à formação de fadistas pela própria rádio estatal dentro de uma lógica “higienizada” de cançonetismo nacional, à entrada do próprio público nos acesos debates acerca da radiodifusão do fado e, finalmente, à inflexão, já em finais da década, da atitude oficial face ao fado após a emergência de um novo potencial internacionalizador com Amália Rodrigues.

Referências

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1Palavras do presidente da Sociedade Portuguesa de Telefonia Sem Fios (TSF), Hermano Neves, em 1925, na revista Rádio Lisboa Magazine.

2Referido na revista TSF em Portugal.

3A primeira referência a emissões de fado na Rádio Graça surge na Canção do Sul, a 1 de fevereiro de 1933.

4Esta regulamentação do fado pelo novo regime ditatorial, que se destinava a controlar as atuações e a moralizar as sua práticas e contextos, acabou por funcionar como mais um estímulo para os fadistas procurarem uma via profissional, como foi assinalado por Rui Vieira Nery (2012, p. 239).

5Em 1933, estavam registados apenas 16.000 aparelhos em todo o país. Em 1935, registavam-se 40.000 e em 1937, 69.000.

6Está em causa um artigo de fundo do Diário de Notícias intitulado “Triste Fado”, não assinado, mas atribuído ao diretor daquele diário.

7Dirigido por Manuel Múrias, o Revolução Nacional publicou-se entre março e agosto de 1934.

8À semelhança do Guitarra de Portugal, também o Canção do Sul o faz em diversas ocasiões.

9A rádio veio participar na expansão geográfica do fado que os discursos críticos já identificavam na década anterior e que também é alimentada por “embaixadas do fado” à província, assinaladas nos jornais entre 1930 e 1934.

10Entrevista de Henrique Galvão à Rádio Semanal, reproduzida no Boletim da Emissora Nacional, n.º 1, agosto de 1935, p. 100.

11Carta ao Ministro Duarte Pacheco.

12Na Primeira República, Augusto da Costa havia sido redator principal do diário A Monarquia, órgão do integralismo lusitano.

13Em 1929, e num contexto em que ainda não estava em causa a radiodifusão, um outro elemento ligado ao integralismo lusitano, Silva Gaio, defendia a mera conservação de alguns “exemplares patológicos” do fado.

14Os jornais de fado também são visados previamente pela Comissão de Censura, como consta nas suas edições durante os anos 30.

15Amália Rodrigues conta, na biografia escrita por Vítor Pavão dos Santos (2005), como em 1939 não regressou ao Retiro da Severa após um primeiro ensaio por causa da oposição da família, para quem “cantar o fado era a perdição” (pp. 53-55).

16Segundo a programação publicada na Rádio Revista.

17O programa existiu, pelo menos, ao longo do primeiro semestre de 1936, constando na programação radiofónica publicada na Rádio Revista.

18Este programa é por vezes apontado como o primeiro em que o fado teve presença regular na rádio a partir de um estúdio, mas na verdade ele foi precedido nas rádios locais, pelo menos, pelo aludido programa dominical da Rádio Peninsular, dirigido por Maria do Carmo em 1936. A estreia do programa do RCP em 1937 está referida na revista Antena, órgão do RCP, 1 de outubro de 1965.

19No programa da Emissora Nacional publicado no Rádio Nacional, as menções às transmissões do Retiro da Severa cessam no final de 1939.

20Testemunho do fadista amador Armando Santos.

21Empregado de escritório inquirido na referida reportagem da Rádio Revista, de 1 de janeiro de 1936, p. 6

Recebido: 18 de Março de 2021; Aceito: 09 de Setembro de 2021

José Ricardo Carvalheiro é professor auxiliar da Universidade da Beira Interior, Faculdade de Artes e Letras, Departamento de Comunicação, Filosofia e Política. É ainda investigador do LabCom, unidade de investigação em comunicação e artes. Email: jose.carvalheiro@labcom.ubi.pt Morada: Av. Manuel da Maia, 54, 1º esq., 1000-203 Lisboa

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