Introdução
Nos últimos anos têm sido realizados diversos estudos sobre as narrativas da história nacional e as dinâmicas da memória cultural em Moçambique (e.g., Khan et al., 2019; Schefer, 2016). No entanto, é ainda muito escassa a pesquisa sobre os manuais de história no ensino moçambicano, sendo ainda mais escassos os estudos que cruzam esta temática com as representações de género e interseccionalidades.
Enquanto “lugares de memória” (Nora, 1989), os manuais escolares têm constituído um veículo privilegiado de disseminação da “memória oficial” da nação (Pollak, 1989), mas também uma das arenas privilegiadas da educação para a cidadania e para a paz. De facto, os manuais escolares constituem um produto cultural complexo, onde se cruzam questões científicas, pedagógicas, políticas, socioeconómicas e artísticas. Hoje em dia, na maioria dos países, a produção de manuais escolares está sujeita a uma série de medidas de regulação imanadas de diversas instituições a nível internacional e nacional, visando garantir um conjunto de “boas práticas”, entre as quais se destaca a promoção da igualdade de género e o respeito da diversidade cultural. Neste artigo, iremos focar-nos no manual escolar enquanto objeto incontornável das políticas da memória e como instrumento pedagógico para a desconstrução de estereótipos sociais e a educação para a cidadania (e.g., Carretero et al., 2017).
No que respeita especificamente ao ensino da história em Moçambique, os estudos anteriores focaram-se sobretudo nas orientações curriculares, nos programas e no conteúdo dos manuais. Por exemplo, Cabecinhas et al. (2018) desenvolveram uma análise exploratória sobre as representações do colonialismo europeu e das lutas de libertação nos currículos e manuais de história em vigor no ensino secundário em Moçambique. Este estudo teve continuidade através de uma análise do “roteiro de libertação” (Coelho, 2013) em manuais de história publicados desde a independência até à atualidade (Cabecinhas et al., 2021). No entanto, estes trabalhos focaram-se apenas no conteúdo verbal dos manuais. Por seu turno, Cabecinhas e Mapera (2020) fizeram uma análise exploratória sobre as ilustrações (desenhos, fotografias, entre outros) e as fontes de informação que são mencionadas em manuais de história publicados em duas fases distintas da história de Moçambique.
Neste trabalho, pretendemos aprofundar o estudo das imagens nos manuais de história, tendo como foco principal as assimetrias de género, com uma abordagem decolonial e interseccional (Mignolo & Walsh, 2018; Pereira et al., 2020). Nesse sentido, iremos prestar particular atenção às imagens que retratam mulheres (sozinhas ou acompanhadas; identificadas pelo nome ou não) e como essas imagens se articulam com o texto. Pretendemos verificar quais as mulheres que têm “rosto”, “nome” e “voz”, ou seja, iremos verificar se as mulheres nomeadas são citadas no texto ou se apenas figuram nas imagens como mera ilustração. Pretendemos ainda discutir o potencial papel dessas imagens para o combate ao sexismo e para a descolonização do conhecimento.
Neste artigo, iremos focar a nossa atenção na dimensão icónica dos manuais escolares. Partindo de um modelo de análise decolonial e interseccional (Cabecinhas & Mapera, 2020), examinamos as imagens que figuram nos manuais, considerando que cada pessoa pertence a múltiplos grupos sociais — socialmente construídos em termos de género, grupo etnolinguístico, idade, classe social, entre outros — com posições assimétricas em uma dada sociedade.
Em Moçambique, a luta de libertação foi apresentada como uma luta contra duas formas principais de opressão — a “colonial” e a “tradicional”. No seio da Frente de Libertação de Moçambique (FRELIMO)1, a emancipação das mulheres foi discutida e considerada fundamental para o alcance da libertação nacional, conforme declaração de Eduardo Mondlane proferida em 1967, aquando da criação do Destacamento Feminino (DF): “vamos deixar elas entrarem aqui em Nashingwea para treinar. Elas é que vão mostrar se são ou não capazes de ser também uma força militar” (Mondlane, 1967, como citado em Zimba, 2012, p. 29). A par disso, em 1973, Samora Machel (como citado em Zimba, 2012) definiu “o DF como um instrumento crucial de formação política e libertação da mulher” (p. 30). No discurso de abertura da "Primeira Conferência da Mulher Moçambicana", Samora Machel (1973) afirmou:
a emancipação da mulher não é um acto de caridade, não resulta de uma imposição humanitária, ou de compaixão. A libertação da mulher é uma necessidade fundamental da Revolução, uma garantia da sua continuidade, uma condição do seu triunfo. ( … ) Como fazer triunfar a Revolução sem libertar a mulher? Será possível liquidar-se o sistema de exploração, mantendo uma parte da sociedade explorada? ( … ) Como fazer então a Revolução sem mobilizar a mulher? Se mais de metade do povo explorado e oprimido é constituído por mulheres, como deixá-las à margem da luta? (p. 47)
Este quadro interseccional é particularmente relevante e desafiante em contexto moçambicano, uma vez que a luta de libertação nacional pretendia desmantelar todo o tipo de opressões e assim criar uma nação livre de qualquer tipo de discriminação, nomeadamente, o racismo e o sexismo.
Nas secções seguintes, iremos apresentar brevemente o quadro analítico e o contexto da nossa pesquisa, nomeadamente no que concerne à memória pública e ao ensino da história em Moçambique. Em seguida, apresentamos uma análise interseccional de quatro manuais de história referentes ao segundo ciclo do ensino secundário geral — 11.ª e 12.ª classes —, publicados por editoras diferentes — Plural Editores e Texto Editores2 —, todos seguindo o programa aprovado pelo Ministério de Educação e Desenvolvimento Humano (MINED) para as respetivas classes.
Descolonização do Pensamento, Interseccionalidades e Ensino da História em Moçambique
O ensino da história tem sido considerado como um dos instrumentos fundamentais para a construção da ideia de Estado-Nação. Tal como outros instrumentos do Estado, o ensino da história estabelece diretrizes sobre o que deve ser esquecido e sobre o que deve ser lembrado do passado da nação e como deve ser lembrado, cimentando assim um elo entre os sistemas de significado dominantes ou as representações sociais hegemónicas (Jodelet, 1991) e as experiências e trajetórias pessoais. Alguns estudos demonstraram o impacto de longa duração dos manuais escolares na formação das visões do mundo por parte dos jovens (e.g., Ide et al., 2018), daí a grande importância deste estudo.
Como salienta Wertsch (2002), a história oficial e a memória pública estão intimamente relacionadas, resultando de um processo seletivo de construção do passado em um dado contexto cultural, processo esse que não pode ser compreendido sem ter em conta as relações assimétricas de poder entre grupos, os símbolos culturais e as agendas do presente. Estudos recentes realizados em diversos países nos vários continentes indicam que os manuais de história raramente desafiam as narrativas dominantes da nação (e.g., Cajani et al., 2019). Por exemplo, nos manuais escolares atualmente em vigor no ensino secundário português, as imagens que são escolhidas para ilustrar conceitos, acontecimentos e personalidades históricas remetem, explícita ou implicitamente, para hierarquias da humanidade que reatualizam hierarquias coloniais e tornam evidente quais são as “vidas que importam” e quais são sistematicamente “apagadas” (Cabecinhas, 2018).
Em uma acutilante crónica publicada no jornal Sol há cerca de 1 década atrás, Nataniel Ngomane (2012) perguntava ironicamente “lusofonia: quem quer ser apagado?” (p. 24). Na referida crónica, Ngomane denuncia a versão lusocêntrica da história que foi forçado a aprender na escola em Moçambique durante o período do Estado Novo, em que aprendeu sobre os heróis portugueses, mas nada aprendeu sobre os heróis moçambicanos. O título desta crónica serviu-nos de inspiração a uma série de estudos realizados no âmbito de um vasto programa de pesquisa sobre representações sociais da história, no qual temos interrogado as linhas de rutura e também as linhas de continuidade entre o colonial e o pós-colonial.
Na ótica de Ribeiro (2015), a educação colonial atendia a três princípios: a expansão da fé, a civilização por meio de assimilação; e o trabalho como garantia de dignidade. Esta forma de conceber a educação contribuiu para o silenciamento da história e da cultura dos povos locais e para o desinvestimento em educação de qualidade para todas as franjas da população. De facto, os dados dos censos de 1970 indicavam uma taxa de analfabetismo em Moçambique na ordem de 89,7% (Mazula, 1995).
Em Moçambique, com o advento da independência nacional em 1975, aclamava-se por uma educação capaz de formar moçambicanos livres da mentalidade inculcada durante o período colonial. Como salienta Castiano (2019), a educação foi considerada por Samora Machel “uma tarefa de nós todos”, sendo que por trás desta ideia de “todos” estava subjacente a “‘massificação’ da educação: crianças, jovens, adultos, operários, camponeses, soldados, funcionários públicos, cooperativas de produção e de consumos, etc.” (p. 276). De acordo com Castiano (2019), o sistema de educação então delineado baseou-se na “negação dos ‘valores’ coloniais e tradicionais. A educação deveria combater o que se chamava de ‘sequelas’ do homem colonial como sejam o elitismo, a discriminação racial e o individualismo que se consubstanciava na exploração do homem pelo homem (capitalismo)” (p. 276). No que respeita às “‘sequelas’ da tradição que a educação devia combater incluía-se o tribalismo, o obscurantismo, o etnocentrismo e a discriminação da mulher” (Castiano, 2019, p. 277).
Através da Lei n.º 4/83 (1983), foi aprovado o Sistema Nacional de Educação tendo “como objetivo central a formação do Homem Novo, um homem livre do obscurantismo, da superstição e da mentalidade burguesa e colonial, um homem que assume os valores da sociedade socialista” (p. 24-(14)), com “uma consciência nacional, patriótica, revolucionária e internacionalista” (p. 24-(16)). De acordo com este documento, “o ensino deve estimular a ligação entre a teoria e a prática”, a “ligação estreita entre a escola e a comunidade” e “preservar e desenvolver o património cultural da Nação” (Lei n.º 4/83, 1983, p. 24-(14)). No entanto, o processo de construção da nação baseava-se na eliminação das manifestações culturais locais, por alegadamente contribuírem para o regionalismo, o tribalismo e obscurantismo (e.g., Cabaço, 2007). Assim, foram combatidas as estruturas administrativas locais (régulos), já que foram as mesmas estruturas usadas pelo colonialismo na sua administração (Cabaço, 2007). De acordo com Ribeiro (2015), nos manuais escolares de história desse período, a história da Frelimo e das conquistas anticoloniais constituíam os principais conteúdos, sendo que a história da nação se restringia quase exclusivamente à história da Frelimo.
A partir dos anos 90, com a assinatura do acordo de paz, a realização de eleições e a introdução do multipartidarismo, Moçambique redefiniu as suas políticas económicas e educativas (Jamal, 2019). Para adequar o ensino ao contexto nacional e internacional, foi aprovada a Lei n.º 6/92 (1992) do Sistema Nacional de Educação, substituindo a Lei n.º 4/83. Estas reformas visavam não só a introdução de um modelo educacional virado para o mercado global, como também para a cooperação económica e cultural. Inicia-se uma revisão curricular que culminou com a aprovação do plano curricular do ensino básico em 2004 e do plano curricular do ensino secundário geral em 2008, visando fomentar um “ensino multicultural” (Jamal, 2019). Assim, são introduzidos novos objetivos educacionais, com maior ênfase no reconhecimento da diversidade cultural, étnica, religiosa e política (Jamal, 2019). Até que ponto tais objetivos foram alcançados?
Meneses (2017) considera a nação moçambicana como resultado de um conjunto de referências memoriais do passado ligadas a uma elite política, com a finalidade de afirmação e legitimação da sua hegemonia. Segundo a autora, a memória oficial da nação é escrita a partir do Sul e disseminada para todo o país, silenciando a diversidade de memórias.
De acordo com Mueio (2019), o Sistema Nacional de Educação, especificamente o plano curricular do ensino secundário geral, preconiza a abordagem ao tema género e equidade de modo transversal em todas as disciplinas. Para avaliar o modo como essa transversalidade acontece na 10.ª classe do ensino secundário geral, Mueio (2019) observou, numa unidade escolar em Boane, Maputo, os documentos normativos do programa de ensino de português, bem como os manuais escolares e a lecionação das disciplinas de língua portuguesa e de geografia. No âmbito desse trabalho, Mueio (2019) constatou que cada professor leciona o tema género a seu modo, o que, na opinião da autora, tem um impacto positivo no que concerne à compreensão dos alunos sobre as questões de género e equidade, embora, segundo a autora, as comunidades nas quais os alunos estão inseridos não contribuam muito para melhorar essa compreensão.
Mueio (2019) salienta que, na abordagem dos temas transversais, os professores têm encontrado constrangimentos relacionados com aspectos culturais do meio onde a escola se encontra inserida. Esses constrangimentos estão relacionados com aspectos que constituem tabus em certas regiões, o que dificulta a abordagem de certos temas, como, por exemplo, a gravidez precoce e o assédio sexual. Dessa observação, em ambas as disciplinas (língua portuguesa e geografia), a autora concluiu que o “género” é lecionado com recurso a métodos expositivos e não transversais. Nesse sentido, Mueio (2019) propõe que se tenha em conta métodos de ensino transversais, interdisciplinares e centrados no aluno.
Alguns autores moçambicanos têm salientado que o modo como os manuais escolares abordam a questão da representação étnico-cultural daquilo que deve ser ensinado nas escolas e de que depende o desenvolvimento sociocultural de um país como Moçambique poderia ser revisto, pelo menos, no que concerne a algumas dimensões, nomeadamente as referidas por Laisse (2020) e Silva (2013).
Focando-se em uma abordagem a manuais de ensino da língua portuguesa da 11.ª e da 12.ª classes, Laisse (2020) demonstrou que nesses recursos, no que ao ensino da literatura diz respeito, o cânone literário ensinado nas escolas não é representativo de todos os grupos étnicos moçambicanos. Por seu turno, tendo estudado a educação intercultural e a representação iconográfica dos moçambicanos, nos manuais do ensino básico (primeira, segunda e terceira classes), Silva (2013) constatou que a realidade social retratada nos manuais é restritiva e sujeita a criar preconceitos nos alunos, por não ser inclusiva à representação das diferentes etnias moçambicanas. A esse propósito, o autor afirma:
olhando para essas imagens de gente moçambicana, seja quem for que as observe, urbano ou campesino, fica ciente e plenamente convencido de que Moçambique é apenas habitado por pessoas de cor negra.
A riqueza cultural da “multirracialidade” é completamente esquecida neste manual o que é grave, pois não representa a realidade social de um país cuja diversidade de origens é interessantíssima e estando até num processo de miscigenação imparável. Assim, como fazer com que crianças do interior, por exemplo, reconheçam um professor ou qualquer cidadão não negro como moçambicano? Não estaremos a criar a partir de tenra idade pressupostos xenófobos e mesmo preconceitos epidérmicos? (Silva, 2013, p. 46)
Os resultados destes dois estudos são importantes para pensar as questões do ensino dos saberes locais, que, de acordo com Basílio (2012), têm o intuito de dar um estatuto epistemológico ao científico e ao cultural em Moçambique, contribuindo assim para a descolonização do conhecimento.
Neste trabalho, a nossa análise será circunscrita aos manuais escolares de história em vigor nas 11.ª e 12.ª classes. Atualmente, os manuais de história aprovados pelo MINED estão integralmente escritos em língua portuguesa, sendo produzidos por diferentes editoras, com parceiros internacionais. O conteúdo dos manuais é produzido localmente, mas a edição e a impressão são frequentemente realizadas no estrangeiro. O MINED define os programas de ensino que as editoras deverão seguir. São as editoras que escolhem os autores e por sua vez o ministério seleciona avaliadores. A avaliação incide sobretudo no conteúdo verbal do manual e não tanto na forma, nomeadamente nas imagens.
Antes de nos focarmos no conteúdo dos manuais é importante referir brevemente alguns dos objetivos do ensino da história da 11.ª e 12.ª classes e respetivos conteúdos programáticos. Entre os objetivos centrais da 11.ª classe referem-se os seguintes: “identificar na História o papel das comunidades no contexto do património histórico nacional”; “analisar os conteúdos da história do país como forma de contribuir para fortalecer a consciência patriótica e a unidade nacional”; “compreender a dinâmica da História do país nos níveis socio-político, económico e cultural” (Instituto Nacional de Desenvolvimento da Educação [INDE], 2010a, p. 8).
O programa de história 11.ª classe (H11) é constituído por cinco unidades: “1 Introdução à História; 2 Invasão, Partilha e ocupação efectiva de África; 3 África no período colonial; 4 Os Movimentos de Libertação Nacional 1880-1980; 5 Problemas Africanos de Hoje: 1960 aos nossos dias” (INDE 2010a, p. 8). O programa indica que o conteúdo sobre o nacionalismo se relaciona com o “tema Transversal: Identidade cultural e moçambicanidade” (INDE, 2010a, p. 16), sugerindo a seguinte abordagem da matéria:
sugerimos que o professor oriente os alunos a realizarem pequenos trabalhos sobre o papel de alguns nacionalistas moçambicanos que se destacaram na luta contra o sistema colonial: Por exemplo, Eduardo Mondlane, Filipe Samuel Magaia, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui de Noronha, Tómas Nduda e outros. Em relação ao MLN, professor [deve] prestar atenção aos aspectos ligados à emergência do Nacionalismo Africano começando pelos esporádicos levantamentos de camponeses à acção dos intelectuais, até à formação dos partidos políticos. (INDE , 2010a, p. 23)
O programa de história da 12.ª classe (H12) é constituído por cinco unidades temáticas, nomeadamente: “1 Periodização da História de Moçambique; 2 Moçambique - Da comunidade Primitiva ao surgimento das sociedades de exploração; 3 Os Estados de Moçambique e a penetração mercantil estrangeira; 4 O período da dominação colonial em Moçambique; 5 Moçambique depois da independência” (INDE, 2010b, p. 8). Entre os objetivos do programa da 12.ª classe refere-se: “Caracterizar o Movimento de Libertação Nacional, a Independência Nacional e o período pós-Independência” e “Interpretar criticamente e saber fundamentar os acontecimentos do mundo actual, através da compreensão do funcionamento estrutural e da dinâmica evolutiva das sociedades nos ‘Estados de Moçambique’” (INDE, 2010b, p. 12).
O programa da 12.ª classe apela a que os professores façam uma abordagem do período da “pós-Independência” de modo a “enquadrar os temas transversais ligados a cultura de paz, direitos humanos, democracia; identidade cultural e moçambicanidade para além do tema sobre género e equidade” (INDE, 2010b, p. 32). No entanto, tal não é vertido nos conteúdos programáticos. De referir que os programas mencionam explicitamente diversas personalidades históricas que deverão ser abordadas, mas Noémia de Sousa é a única mulher mencionada (INDE, 2010a, p. 23).
Como referimos anteriormente, escasseiam estudos que abordem as representações de género nos manuais de história moçambicanos. Não temos conhecimento de estudos sobre a forma como as mulheres são representadas nos manuais de história produzidos por diferentes editoras atualmente em uso no segundo ciclo do ensino secundário geral.
Neste estudo, fazemos uma análise sincrónica, multimodal e comparativa da forma como as mulheres são representadas nos manuais de história da 11.ª e 12.ª classes, a partir de quatro eixos: nome (quais as mulheres nomeadas); rosto (quais as mulheres retratadas em imagens); voz (quais as mulheres cujas palavras são citadas); papel social (qual o papel social atribuído às mulheres que são nomeadas, citadas ou retratadas).
O nosso objetivo é refletir sobre como as imagens incorporadas nesses manuais escolares podem contribuir para a tarefa de descolonizar o conhecimento histórico; e até que ponto os elementos visuais estão alinhados com o texto, para transmitir um roteiro único do processo de construção da nação. De seguida, apresentamos os principais resultados da nossa pesquisa. Num primeiro momento, analisamos o modo como as mulheres figuram nos manuais da 11.ª classe e seguidamente centramo-nos nos manuais da 12.ª classe.
Manuais da 11.ª Classe: O Apagamento das Mulheres na História de África
Como referimos anteriormente, o programa de história da 11.ª Classe é totalmente dedicado à história de África. No manual H11 História 11ª Classe da Texto Editora, refere-se que a “Invasão do Continente Africano” corresponde a “um período marcado pelo esforço de dominação do continente africano empreendido pelos europeus, ao que os africanos ripostaram com os meios disponíveis para inviabilizar essa pretensão” (p. 2).
Este manual não apresenta uma única imagem em que sejam visíveis mulheres. Não é nomeada qualquer mulher no manual nem são citadas as palavras de qualquer mulher. Aparece apenas o nome “Rainha Nzinga” em um mapa de África (p. 75) no espaço correspondente a Angola, como se do nome do país se tratasse, mas nada é dito sobre esta personalidade da história de Angola.
Neste manual, a hegemonia masculina é total em termos visuais: todas as personalidades históricas retratadas são homens e as imagens que surgem como separadores de capítulo são todas de pessoas do sexo masculino3, o que reforça a naturalização da dominação masculina. Assim, no manual H11 História 11ª Classe, dedicado à história de África, as mulheres são completamente apagadas enquanto pessoas e enquanto agentes históricos, isto é, a história de África é apresentada como exclusivamente masculina.
Em contrapartida, no manual História 11ª Classe da Plural Editores constatámos um esforço de inclusão de mulheres na história de África, como explicaremos de seguida. No entanto, a história continua a ser apresentada como um empreendimento masculino, como fica bem patente em uma figura na qual se explica que “a História é a ciência dos homens ao longo do tempo” (p. 11) e se apresenta a seguinte periodização: antiguidade, idade média, renascimento, época moderna e época contemporânea. Não cabe aqui discutir as complexas questões inerentes à periodização histórica apresentada (Lorenz, 2017), mas é curioso constatar que esta imagem ao mesmo tempo que procura situar a história de Moçambique na história universal, através da inclusão do retrato de Eduardo Mondlane para simbolizar a época contemporânea, revela a naturalização do apagamento das mulheres enquanto sujeitos históricos já que as figuras escolhidas para representar as diversas épocas históricas são homens.
O manual da 11.ª classe da Plural Editores apresenta algumas imagens com mulheres, mas na maior parte dos casos essas mulheres são anónimas. As mulheres nomeadas são apenas sete: Eugène Delacroix, Reinata Sadima, Eleanor Roosevelt, Joséphine Baker, Rosa Luxemburgo, Noémia de Sousa e Amélia Souto. Entre estas, há apenas uma mulher com voz: a historiadora Amélia Souto, cujo livro é citado. De seguida, iremos apresentar algumas das imagens em que figuram mulheres e as respetivas legendas.
Na Figura 1 está retratada uma mulher anónima, fotografada em uma plantação de algodão, em Sofala. Essa mulher tem uma peneira de algodão na mão e um bebé às costas. Como podemos constatar, a legenda refere “mulher africana numa plantação de algodão (Sofala, actualidade)” (p. 56). Este tipo de legenda, remetendo para uma descrição genérica da “mulher africana” é comum em manuais escolares europeus, mas podemos interrogar-nos porque surge este tipo de legenda em um manual moçambicano. Possivelmente, este tipo de legenda pode decorrer do facto do trabalho de design dos manuais em vigor em Moçambique — incluindo paginação, escolha das ilustrações e sua legendagem —, ser realizado por editoras locais que são filiais de editoras portuguesas.
Fonte. De História 11ª Classe (p. 56), de J. Nhapulo e G. Cumbe, 2015, Plural Editores. Reimpresso com autorização
O manual refere que “o tráfico de escravos e as circunstâncias em que o mesmo era praticado terá aberto um novo relacionamento entre as tribos locais com os europeus” (p. 76), sendo apresentada uma fotografia de uma “mulher de tribo swahili” (p. 76), sem qualquer contextualização adicional. Pode, assim, depreender-se que a tal fotografia pretende simplesmente ilustrar uma dessas alegadas “tribos”.
Mais adiante no mesmo manual é apresentada uma fotografia de uma jovem mulher no meio do mato. Nem o texto explicativo nem a legenda da fotografia (“jovem azande, Congo”, p. 78) fazem referência a quem é a pessoa que está representada, de peito nu e um colar de missangas, o que configura uma linha de continuidade com as visualidades coloniais (e.g., Vicente, 2014). O texto explicativo ao lado da fotografia aborda os movimentos de resistência no Sudão contra as autoridades britânicas, referindo que os azande “protagonizaram acções de resistência, mas não tiveram melhor sorte. Foram derrotados entre 1905 e 1908” (p. 78).
Um pouco mais adiante, está retratada, em fotografia, uma mulher anónima na colheita de algodão (Figura 2). A legenda refere “mulher na colheita de algodão, em Moçambique, no período colonial” (p. 114). O texto circundante à fotografia aborda a “exploração mineira e agricultura” na África austral, especificando as diferenças entre a “África Ocidental britânica” e a “África francesa” (p. 114).
Fonte. De História 11ª Classe (p. 114), de J. Nhapulo e G. Cumbe, 2015, Plural Editores. Reimpresso com autorização
O manual de Nhapulo e Cumbe dedica duas páginas à “acção das mulheres” na luta da libertação, explicando que “a sua presença misturava sentimentos. Por um lado, eram lutadoras fervorosas, mas, por outro, a sua feminilidade contagiava e distraía os partidários do sexo oposto” (p. 146). A esse propósito, é apresentada no texto do manual uma citação de Ki-Zerbo, relativa a 1972, explicando que “a participação [das mulheres] nas reuniões, sobretudo de noite, criava naturalmente sérios problemas sentimentais e sociológicos” (p. 146). Curiosamente, ou talvez não, não é citada nem referida qualquer mulher sobre a “acção das mulheres” na luta da libertação, embora muitas tenham dado a vida nessa luta.
Na página seguinte, o manual apresenta duas telas sobre a "importância de grupos económicos femininos na difusão das ideias nacionalistas" (Figura 3; p. 147). Relativamente à primeira tela, a legenda explica que “[r]epresenta a mulata vendedora de ervilhas, cansada e prostrada por ser alvo de humilhação e indiferença por parte de brancos (realidade brasileira)” e relativamente à segunda tela, explica-se que “certas mulheres são exaltadas até hoje como heroínas anti-coloniais (p. 147). Contudo, a representação feminina nos organismos dirigentes desenvolveu-se muito lentamente por razões como a baixa instrução, obstáculos e preconceitos sociológicos” (p. 147), mas não são mencionados os nomes e ações das tais mulheres. Nessa mesma página é colocado um exercício aos estudantes — “explique como as mulheres foram importantes nos partidos políticos africanos” —, mas sem que seja dada informação que permita efetuar devidamente tal exercício.
Fonte. De História 11ª Classe (p. 147), de J. Nhapulo e G. Cumbe, 2015, Plural Editores.Reimpresso com autorização
No manual de Nhapulo e Cumbe são apenas retratadas quatro mulheres identificadas pelo nome: Eleanor Roosevelt, Josephine Baker, Rosa Luxemburgo e Reinata Sadima. Assim, apesar de ser um manual dedicado à história de África, apenas uma dessas mulheres é africana: a artesã moçambicana Reinata Sadima.
Rosa Luxemburgo foi mencionada entre “vários estudiosos”, no âmbito de diferentes estudos sobre o imperialismo: “vários estudiosos, como Vladimir Lenine, George Ledebour e Rosa Luxemburgo dedicaram-se a este assunto, mas John Atkinson Hobson foi considerado o que melhor explana a teoria” (p. 71). Por seu turno, Eleanor Roosevelt aparece numa fotografia em uma página em que se aborda “os sindicatos em África”. A fotografia, sem título, apresenta a seguinte legenda: “Declaração Universal dos Direitos Humanos. Versão impressa a ser lida por Eleanor Roosevelt, uma das redactoras desde documento fundamental, em 1948” (p. 118). O texto do manual explica que a referida declaração “defende, num dos seus artigos, o direito à sindicalização e à reivindicação dos direitos dos trabalhadores” (p. 118). Explica-se que os sindicatos lutaram “pela melhoria das condições laborais; pelo aumento salarial; pelo respeito das horas laborais estabelecidas internacionalmente; pelo tratamento específico das particularidades fisionómicas da mulher trabalhadora; pelo fim da discriminação racial no sector do trabalho” (p. 118). Explica-se que “nas colónias francesas e portuguesas havia uma clara discriminação racial no local de trabalho. No entanto, o sindicalismo chegou tarde a África” (p. 118), mas nada é acrescentado sobre as tais “particularidades fisionómicas da mulher trabalhadora” nem sobre a participação das mulheres nos sindicatos em África (p. 118). É apresentada uma fotografia (Figura 4) do primeiro “congresso dos jovens Artistas e Escritores Negros, Setembro de 1956, Sorbonne” (p. 145). Na legenda da fotografia refere-se que este evento:
contou com a presença dos maiores intelectuais da altura: Léopold Sédar Senghor, Alioune Diop, Aimé Césaire, Louis Armstrong, Joséphine Baker, etc. Durante 3 dias, a intelligentsia teve oportunidade de lançar ideias nacionalistas sobre a sua África. Foi o primeiro congresso de [do] género, que serviu de fermento para moldar a consciência africana. (p. 145)
Fonte. De História 11ª classe (p. 145), de J. Nhapulo e G.Cumbe, 2015, Plural Editores. Reimpresso com autorização.
Alguns dos intelectuais mencionados nesta legenda são posteriormente abordados no manual, mas sobre a ação de Joséphine Baker, a única mulher na fotografia, nada é dito. Já que houve o cuidado de incluir o seu nome na legenda, teria sido pertinente aproveitar a oportunidade para incluir alguma informação sobre a mesma.
Reinata Sadimba4 é a única mulher moçambicana nomeada em uma fotografia (Figura 5), com a seguinte legenda: “artesã Reinata Sadimba a executar uma obra em barro. Arte maconde (actualidade)” (p. 110). A fotografia surge junto a um texto que aborda a “função das colónias para a metrópole e o impacto na economia africana”, no qual se refere que “uma das características da economia colonial era a exploração de matérias-primas e o desencorajamento de qualquer iniciativa com vista à industrialização e à transformação de matérias-primas e produtos agrícolas” (p. 110). Nada se acrescenta sobre os saberes endógenos, sobre a “arte maconde” ou sobre a obra de Reinata Sadimba, cuja fotografia parece servir apenas para ilustrar uma matéria-prima específica — o barro —, e não a sua própria produção artística.
Fonte. De História 11ª Classe (p. 110), de J. Nhapulo e G. Cumbe, 2015, Plural Editores.Reimpresso com autorização.
No que respeita às “forças motrizes do nacionalismo africano”, o manual refere as seguintes: “os sindicatos africanos, a acção dos intelectuais; a acção dos partidos políticos; os movimentos de estudantes; a acção das religiões; o papel dos jovens e a acção das mulheres” (p. 140). No que toca ao papel dos intelectuais, destaca-se que estes “lutaram pela afirmação do ‘Eu’ africano. Reivindicavam a autenticidade africana de forma vital. ( … ) O intercâmbio com grupos intelectuais de outros quadrantes do mundo abriu novos horizontes e trouxe novos questionamentos sobre a legitimidade do colonialismo” (p. 142). Noémia de Sousa é nomeada, entre um grupo de “intelectuais de personalidade nacionalista” — incluindo José Craveirinha, Rui de Noronha, Rui Knofli e Rui Nogar — que assumiram “a sua africanidade a partir do seu compromisso com a moçambicanidade” (p. 143). Nessa página, há um exercício no qual se afirma: “Eduardo Mondlane, Filipe Samuel Magaia, Noémia de Sousa, José Craveirinha, Rui de Noronha e Tomás Nduda, entre outros, contribuíram muito para o desenvolvimento da ‘africanidade’ e da ‘moçambicanidade’” e de seguida convoca os alunos a desenvolverem um trabalho “sobre um destes carismáticos moçambicanos” (p. 143).
De referir ainda que a única mulher com voz no manual é a historiadora moçambicana Amélia das Neves Souto, cuja obra Guia Bibliográfico é citada a propósito das “características gerais do colonialismo em África”. Nas palavras da autora, na obra acima referida, “a política colonial indígena foi sempre definida em função dos interesses económicos, políticos e sociais do poder colonial. Para defesa desses interesses, a administração colonial desde sempre sentiu necessidade de utilizar as autoridades tradicionais” (p. 92). As demais fontes citadas no texto em ambos os manuais dedicados à história de África (11.ª classe) são masculinas.
Manuais da 12.ª Classe: O Apagamento das Mulheres na História de Moçambique
Como referimos anteriormente, o programa de história da 12.ª classe é totalmente dedicado à história de Moçambique.
No manual H12 História 12ª Classe, da Texto Editora (Mussa, 2015), é apenas apresentada uma imagem com uma mulher anónima e não são citadas as palavras de qualquer mulher em todo o manual. O manual faz duas menções às “mulheres” em geral, mas para as referir enquanto vítimas, equiparadas a “gado”, como se pode constatar na seguinte citação:
a historiografia eurocêntrica desvaloriza o impacto das resistências anti-coloniais. De facto, os historiadores europeus afirmam que as guerras de ocupação colonial serviam para impor a ordem, paz, estabilidade e tranquilidade, uma vez que, antes da vinda dos europeus, os africanos lutaram entre si, para a expansão de reinos ou para a pilhagem de gados e mulheres dos vencidos [ênfase adicionada]. (p. 86)
Neste manual surgem algumas referências genéricas sobre as diferentes formas de organização social, nomeadamente as sociedades patriarcais e matriarcais, mas não é dada qualquer informação personalizada sobre a agência das mulheres na história de Moçambique. São nomeadas cinco mulheres — Eulália Maximiano, Josina Muthemba, Noémia de Sousa, Precilda Gumane e Sofia Pomba Guerra —, mas trata-se de menções genéricas, no meio de outros nomes, como podemos constatar na citação seguinte:
poetas, pintores, e escritores também manifestaram o seu descontentamento perante o facto colonial. Homens, como Rui de Noronha, Malangatana, José Craveirinha, João Craveirinha, Noémia de Sousa, entre outros [ênfase adicionada], nos seus poemas, nas suas telas, nos seus escritos protestavam contra a situação colonial. (p. 126)
De referir que Noémia de Sousa é a única mulher cujo nome aparece mais do que uma vez no manual de Mussa, mas não há qualquer informação sobre a sua obra nem é citado nenhum dos seus poemas. De salientar ainda que na última parte do manual, dedicada a Moçambique independente, não há qualquer menção às mulheres em geral nem a qualquer mulher em particular, abundando as fotografias de homens, nomeados pelo seu nome e com informação concreta sobre o seu papel na história do país após a independência.
O manual apresenta apenas uma imagem com uma mulher sozinha, sentada no chão, mas esta não tem nome nem voz. Trata-se de uma fotografia com a seguinte legenda: “anciã protetora das pinturas rupestres em Manica” (p. 14), que serve para ilustrar a importância das fontes arqueológicas.
O manual inclui ainda, quase despercebida, outra imagem em que figuram mulheres. Trata-se de uma fotografia do painel5 referente à prisão de Ngungunyane6, em 1895 (p. 6), no qual duas mulheres aparecem representadas, atrás, cabisbaixas, mas nada é dito sobre o destino que foi imposto a tais mulheres7
Resumindo, no manual da H12 História 12ª classe da Texto Editores, dedicado à história de Moçambique, as mulheres são apagadas enquanto pessoas e enquanto agentes históricos. Embora algumas mulheres sejam nomeadas enquanto membros da resistência ao colonialismo, estas não têm rosto nem voz, sendo nomeadas no meio de outros nomes. Além disso, o papel das mulheres na luta armada e na construção de Moçambique independente é completamente obliterado.
Em contrapartida, no manual de História 12ª classe da Plural Editores são retratadas algumas mulheres com rosto e nome, embora a maior parte das imagens remeta para mulheres anónimas. Por exemplo, ilustra-se o tema do património cultural através de uma fotografia de pinturas rupestre, na qual está representada uma mulher anónima.
Na legenda da imagem (Figura 6) pode ler-se “pinturas rupestres. Chinhamapere, Moçambique”, mas nada é dito sobre a mulher retratada (p. 19).
Fonte. De História 12ª Classe (p. 19), de J. Nhapulo, 2019, Plural Editores. Reimpresso com autorização.
Ao abordar as fontes históricas, fala-se no papel dos anciãos na transmissão de conhecimentos entre gerações na tradição oral, sendo apresentada a fotografia de uma mulher anónima com a sua neta (Figura 7), com a seguinte legenda: “avó e neta, Maputo. Os anciãos são como um livro, são um poço de saber na forma falada. A transmissão de conhecimentos entre gerações é fundamental para a tradição oral” (p. 23).
Fonte. De História 12ª classe (p. 23), de J. Nhapulo, 2019, Plural Editores. Reimpresso comautorização.
Diversas outras fotografias de mulheres anónimas servem para ilustrar a “tradição oral” e o “convívio entre gerações” (mulheres a dançar, mulheres com crianças, etc.), o trabalho no campo e a religiosidade. Ao longo do manual surgem ilustrações diversas remetendo para a maternidade, por exemplo, uma imagem de Nossa Senhora com o menino Jesus (p. 13) e uma tela da autoria do pintor Malangatana, cujo título é “Grito de Mãe” (p. 240), que evocam o papel das mulheres enquanto mães ou em outros papéis de parentesco (avós, esposas, filhas).
Na Figura 8 podemos ver uma fotografia com a seguinte legenda: “o imperador Gungunhana e as suas mulheres” (p. 130), que retrata o imperador com as mulheres que o acompanharam aquando da deportação em Lisboa, mas estas não são nomeadas.
Fonte. De História 12ª classe (p. 130), de J. Nhapulo, 2019, Plural Editores. Reimpresso com autorização.
São escassas as mulheres referidas no manual da Plural Editores, e na maior parte dos casos são nomeadas depois de nomes masculinos, sem qualquer informação adicional, como é o caso da escritora moçambicana Paulina Chiziane, cujo nome aparece no final de uma lista de escritores: "Ungulani Ba Ka Kossa, Mia Couto, Hélder Muteia, Pedro Chissano, Juvenal Bucuane, Paulina Chiziane e outros" (p. 192). Na página seguinte, apresenta-se a tela “Olhos Brancos de Farinha de Milho” (1961) da pintora Bertina Lopes8, “cognominada pelos colonialistas como a ‘pintora revoltada’” (p. 193).
São nomeadas duas mulheres portuguesas, ligadas ao Movimento de Unidade Democrática (MUD) juvenil português – Maria Fernanda Silva e Sofia Pomba (pp. 213-214). Noémia de Sousa e Josina Muthemba Machel são as únicas mulheres retratadas em fotografia e identificadas pelo nome (Figura 9 e Figura 10, respetivamente). A escritora moçambicana Noémia de Sousa é mencionada enquanto membro do Movimento de Jovens Democratas de Moçambique (p. 214) e Josina Muthemba Machel enquanto líder da Liga Feminina da Frelimo (p. 219).
Fonte. De História 12ª classe (p. 214), de J. Nhapulo, 2019, Plural Editores. Reimpresso comautorização.Figura 10. Josina Machel Fonte. De História 12ª classe (p. 219), de J. Nhapulo, 2019, Plural Editores. Reimpresso comautorização.
De referir que Josina Machel foi a mulher mais nomeada em estudos realizados com estudantes sobre as representações sociais da história de Moçambique. Não há espaço aqui para discutir a complexidade inerente à centralidade desta personalidade na memória pública moçambicana, mas a tal não será alheio o facto da data do seu falecimento ter sido escolhida como o Dia da Mulher Moçambicana, celebrado como feriado nacional, a 7 de abril.
No que toca às mulheres com voz, neste manual são citadas as historiadoras Amélia das Neves Souto e Tereza Cruz e Silva e é também é mencionado um trabalho de Janeth Mondlane (p. 220). De um modo geral, as mulheres nomeadas engajaram-se em questões políticas, como ativistas, combatentes ou artistas. No que respeita às mulheres cientistas, as únicas mencionadas são historiadoras, cujos trabalhos são citados como fonte nos manuais.
A escassez de mulheres mencionadas e o modo como são retratadas contrasta com os objetivos proclamados aquando da fundação da Organização da Mulher Moçambicana (OMM). Como então sublinhado,
o Comité Central [da FRELIMO] considerou que uma das tarefas prioritárias da nossa luta dever ser o combate pela emancipação da mulher, combate que deve constituir uma preocupação essencial de todos os moçambicanos, tanto dos homens como das mulheres. Isso permitirá não só mobilizar de maneira efectiva as potencialidades da mulher moçambicana ao serviço da luta contra o colonialismo português, mas também pôr termo às práticas discriminatórias e exploradoras da sociedade tradicional e colonial em relação à mulher, permitindo-lhe assumir integralmente o seu papel de cidadã. (Voz da Revolução, 1972, p. 3)
Considerações Finais
Neste trabalho, procedemos à análise de quatro manuais de história em vigor no ensino moçambicano, nomeadamente os manuais das 11.ª e 12.ª classes, focando a nossa atenção no modo como as mulheres são representadas nos manuais da Plural Editores e da Texto Editores. Na nossa grelha de análise tivemos em conta quatro eixos no que se refere à (in)visibilidade das mulheres nos manuais escolares, designadamente: nome (quais as mulheres nomeadas); rosto (quais as mulheres retratadas em imagens); voz (quais as mulheres cujas palavras são citadas); papel social (qual o papel social atribuído às mulheres que são nomeadas, citadas ou retratadas). No que se refere às mulheres retratadas, foram tidas em conta outras dimensões, nomeadamente o tipo de enquadramento e o facto das mulheres serem retratadas sozinhas ou acompanhadas assim como o tipo de legenda (genérica ou personalizada, por exemplo).
Os manuais analisados apresentam poucas ou nenhumas imagens de mulheres nomeadas pelo nome. De um modo geral, as referências às mulheres são muito vagas e remetem para uma homogeneização das mulheres, sendo muito escassos os casos de informação personalizada sobre a ação das mulheres enquanto agentes históricos. A única exceção é referente ao papel social de Noémia de Sousa, desenvolvido em conjunto com outros nacionalistas, na luta pela africanidade e pela moçambicanidade, em consonância com o estipulado no programa de ensino.
De um modo geral, as mulheres surgem nos manuais para ilustrar a “tradição oral”, o “património cultural” e as relações de parentesco. No que se refere ao período colonial, as mulheres surgem sobretudo associadas ao trabalho no campo ou ofícios com matérias-primas locais. Em diversos casos, as imagens apresentadas estão em linha de continuidade com uma visualidade colonial, configurando um modo de representação que contribui para a objetificação das mulheres.
Observámos escassas referências ao papel das mulheres na história de África, em geral, e na história de Moçambique, em particular. A resistência ao colonialismo é sobretudo contada no masculino assim como as lutas de libertação, descorando a literatura que evidencia a agência das mulheres e o seu papel na construção da nação (cf., Casimiro, 2004; Meneses, 2017; Zimba, 2012). Muitos outros dados relevantes poderiam ser convocados para dar conta da participação das mulheres na resistência e luta de libertação, mas também na luta pela paz e não só. Assim, não é a falta de informação ou de imagens de mulheres que justifica a sua ausência nos manuais escolares.
Nos manuais analisados, o apagamento das mulheres é a norma, sendo particularmente acentuado no caso dos manuais da Texto Editores, nos quais não há uma única mulher retratada nomeada. No caso dos manuais da Plural Editores verifica-se uma tentativa de equilíbrio e de inclusão de mulheres enquanto agentes históricos, embora esse trabalho ainda seja aquém do desejável, não só devido à escassez de mulheres mencionadas enquanto personalidades históricas, com nome, rosto e papel, mas também devido à forma como as imagens escolhidas para figurar no manual continuam a configurar estereótipos de género. Tal não é exclusivo dos manuais escolares analisados. De facto, estes estão em conformidade com o padrão dominante de memória pública, em Moçambique e não só, que continua a ser profundamente androcêntrico (Cabecinhas, 2018; Meneses, 2017; Pereira, 2021).
Assim, à semelhança do que tem sido observado em estudos realizados recentemente em outros países (e.g., Chiponda & Wassermann, 2015; Fardon & Schoeman, 2010), os manuais escolares analisados continuam a silenciar e a excluir as mulheres, sendo estas ausentes ou retratadas como mera ilustração genérica e não personalizada. É assim necessário um significativo trabalho dos vários agentes educativos de modo a combater as desigualdades de género, que continuam a determinar que a história do país seja contada como uma “história única”, fortemente androcêntrica. Uma narrativa mais plural das diversas histórias que há para contar é essencial para promover a igualdade de oportunidades entre homens e mulheres, mas também para combater outro tipo de desigualdades, num país em que a história continua a ser escrita quase exclusivamente a partir do Sul, tendendo a ignorar as personalidades históricas de outras regiões do país e dos diversos grupos etnolinguísticos.
Em um trabalho recente, Meneses (2017) lança a seguinte interrogação: “que histórias continuam esquecidas no roteiro narrativo moçambicano?” (p. 50). Ao analisar a história oficial da nação moçambicana, Meneses (2017) salienta a importância de “‘abrir’ a história ao debate”, considerando que o trabalho de “democratização da história é condição essencial para ampliar qualquer reinvindicação de justiça cognitiva” (p. 50). Nas palavras da autora, “restabelecer o papel das mulheres na história recente de Moçambique é um dos grandes desafios que ainda se colocam à libertação da opressão patriarcal, um dos principais objetivos da luta nacionalista” (Meneses, 2017, p. 51). Assim, é necessário um esforço ativo para auscultar e escutar com atenção a pluralidade de vozes no sentido de ampliar a justiça social.
A emergência dos movimentos feministas e dos estudos de género revolucionaram o campo das ciências sociais ao denunciar o silenciamento da contribuição das mulheres nos processos políticos contemporâneos (Hayes, 2005; Santos & Amâncio, 2016). O combate ao androcentrismo na esfera pública faz-se de diversas formas, mas passa necessariamente por proporcionar uma educação de qualidade a todas as crianças, independentemente do sexo, etnicidade e origem social. No que toca aos manuais escolares, não basta colocar imagens de mulheres, mas importa apresentá-las como pessoas e agentes históricos, não apenas como representantes de uma categoria social tida como homogénea e da qual nada se espera para além da reprodução biológica e cultural. Como salienta Meneses (2017), “não se trata apenas de adicionar ou inserir as mulheres na História, mas questionar e desafiar a própria ideia da história ‘oficial’ e problematizar a dicotomia entre o pessoal e o político” (p. 75).
Na construção de uma história mais plural, as narrativas orais e as diversas formas de arte têm um papel decisivo. Também é importante o cruzamento de fontes escritas de diferentes proveniências, pelo que os arquivos “transnacionais” podem assumir um papel decisivo num cenário em que os arquivos “nacionais” tendem a estar inacessíveis para quem não vive na capital do país. A indisponibilidade de determinadas fotografias pode ser colmatada com desenhos e outras ilustrações, trazendo para a esfera pública personalidades que foram rasuradas da história. Quando referimos que é importante trazer para a esfera pública o contributo das mulheres enquanto agentes históricos tal significa que não basta colocar a ilustração e o nome, é importante contextualizar essa ação histórica, permitindo que a história seja discutida na sua complexidade, sobretudo quando estamos a falar dos manuais da 11.ª e 12.ª classe. Mas, na realidade, para muitas crianças e jovens moçambicanos, os manuais escolares continuam uma “miragem” e, por vezes, o papel dos professores resume-se a ditar os manuais em sala de aula9.
Em um texto recente, José Castiano (2019) apresentou uma pertinente reflexão sobre a educação em Moçambique:
a educação moçambicana, para o desespero da maioria dos moçambicanos, dos pais e sobretudo dos professores, foi atacada por interesses estranhos à sua própria essência: passou paulatinamente a ser de fórum privado. O Estado, por falta de recursos, vai penalizando aquele que devia ser o seu aliado: o professor. Este torna-se campeão do sofrimento e da pobreza devido a uma cada vez mais crescente pauperização e deterioração das suas condições de trabalho, apesar das alegadas "inovações". (p. 278)
A forma como o conteúdo dos manuais é trabalhado em sala de aula pode fazer toda a diferença, nomeadamente no que concerne às atividades que são propostas no manual e as condições que são dadas (ou não) aos professores para proporcionar experiências educativas participativas e inclusivas. De acordo com Castiano (2019),
a experiência de guerras (de libertação, dos 16 anos, hostilidades) com alguns períodos de ditas "tréguas" ( … ) mostrou aos moçambicanos uma realidade que teimávamos enquanto colectidade por reconhecer: que a nossa diversidade deve ser colocada ao mesmo nível que a unidade nacionalista, e que a educação deve estar, por isso, ao lado tanto da unicidade territorial e patriótica, quanto ao lado do diverso e diferente. A experiência de guerra fez ressurgir as cores diferentes das quais a nossa historicidade e sociedade moçambicana actual se constitui. E esta "descoberta" fundamental que a sociedade moçambicana vai fazendo corresponde a descoberta de "novas e diferentes comunidades" de Moçambique que disputam o seu espaço de participação e se articulam para a sua inclusão em torno dos campos da economia, da política, da cultura, das religiosidades, do poder, do género, das idades. (p. 278)
Sabemos que a construção da história é uma forma de exercício do poder e geralmente os manuais escolares, tal como outros instrumentos de memória pública, espelham as desigualdades de poder que estruturam a sociedade, nomeadamente as assimetrias de poder simbólico entre homens e mulheres, remetendo as mulheres para as franjas da invisibilidade. As questões de género, pela sua complexidade, são particularmente desafiantes num país multicultural e multilingue como é Moçambique, pelo que a tarefa de dar conta da diversidade do país nos manuais escolares é uma tarefa extremamente díficil, mas o exercício de descentramento e de escuta ativa de outras vozes, sobretudo daquelas que têm sido sistematicamente apagadas, é um importante contributo para promover a inclusão social, a justiça e a paz.