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Vista. Revista de Cultura Visual

versión On-line ISSN 2184-1284

Vista  no.12 Braga dic. 2023  Epub 30-Ene-2024

https://doi.org/10.21814/vista.4626 

Varia

A Conversa Entre um Filme e Seu Espectador: Alcançando a Liberdade

1 Faculdade de Belas Artes, Universidade do Porto, Porto, Portugal


Resumo

Neste artigo, pretende-se refletir sobre a importância do espectador na construção de um processo dialógico com um filme. Para isso, parte-se da aparente necessidade de desconstrução dessa relação que, se inicialmente, pode ser vista como duas esferas interseccionadas, aos poucos tende a fundir-se em apenas uma, a ser rompida. Para a realização dessa análise, foi levada em consideração o ponto de partida da arte ou, em outra medida, a visão do artista, para que tais esferas sejam o reflexo de entendimentos subjetivos, mas claros, e para torná-las, de facto, visuais a partir de tanto. Nesse sentido, encontrou-se em Rancière (2008/2010) uma das perspetivas que considera um novo lugar para o espectador, o de “ativo cocriador”, com o poder de subverter as hierarquias estabelecidas e transformar a relação de poder entre a obra e o público. Simultaneamente, Bazin (1958/2014) pensa que o cinema é uma forma de representação da realidade que permite ao espectador experimentar a sensação de estar presente no mundo retratado na tela. Ora, a questão parece encorpa-se, ainda, ao explicitar-se a importância da sensação, do prazer estético, algo defendido por Sontag (1966/2020). Por tudo isso, parece necessário conceitualizar imageticamente as individualidades e como estas podem ser, minimamente e em caráter subversivo às proposições dos autores citados, direcionadas, para que o espectador se torne, de todo, parte do filme e possa sentir-se importante ao se dar conta de que faz parte do resultado: é quando se rompe a esfera final de dentro para fora, possibilitando uma experiência única de liberdade.

Palavras-chave: experiência estética; visão do artista; espectador cocriador; subjetividades direcionadas

Abstract

This article explores the significance of the spectator's role in shaping a dialogic connection with a film. It is rooted in the discernible need to deconstruct this relationship, which, although it may initially appear as two intersecting spheres, gradually tends to merge into a single one, requiring disentanglement. In this analysis, we considered the inception of art, or the artist's vision, to ensure that these spheres reflect subjective yet distinct interpretations and effectively make them visually evident from that point onward. In this vein, Rancière (2008/2010) provides one perspective that considers a new role for the spectator, an "active co-creator" who can subvert established hierarchies and transform the power dynamic between the artwork and its audience. Bazin (1958/2014) also believes that cinema is a portrayal of reality that grants the spectator a sense of presence in the world depicted on the screen. This perception seems to be amplified by the significance of sensory experience and aesthetic delight, an idea advocated by Sontag (1966/2020). For all these reasons, it seems necessary to conceptualise individualities through imagery and explore how they can be, subtly and subversively to the propositions of the authors mentioned, directed so that the spectator becomes truly part of the film and can feel important as they realise they are part of the outcome: this is when the final sphere is broken from the inside out, enabling a unique experience of freedom.

Keywords: aesthetic experience; artist's vision; co-creator spectator; directed subjectivities

1. Introdução

O cinema é uma fonte inesgotável de expressões, proporcionando não apenas uma narrativa linear, mas um universo rico em diálogos, emoções e ideias articuladas através de uma linguagem única. Este estudo propõe uma abordagem inovadora para compreender a interação multifacetada entre cinema e espectador, introduzindo duas esferas de interpretação: a esfera do entendimento não-formal, que abrange o conteúdo explícito e factual que é apresentado, e a esfera do entendimento formal, que se concentra nos aspetos subjacentes e expressivos que ultrapassam o conteúdo evidente.

A originalidade deste estudo reside na maneira como essas duas esferas são integradas e aplicadas para analisar a experiência cinematográfica, levando em conta a subjetividade do espectador e a coexistência de interpretações literais e expressivas. Essa abordagem, quiçá inovadora, alicerça-se na tradição teórica de pensadores significativos no campo dos estudos de cinema, permitindo uma discussão mais profunda sobre a natureza complexa da arte cinematográfica.

Um estudo de caso é realizado em The Conversation (O Vigilante; Francis Ford Coppola, 1974), centrando-se na cena de abertura do filme e investigando como as nuances do entendimento formal e não-formal se manifestam e estabelecem a narrativa. Aqui, a originalidade das esferas propostas é revelada na análise detalhada da interação entre a literalidade do entendimento não-formal e a expressividade do entendimento formal.

A conversa, então, estende-se para a conceção da arte como mimese da realidade, ampliando a discussão com as reflexões de Susan Sontag (1966/2020) sobre o tema. Este ponto também evidencia a originalidade do estudo, trazendo novos insights sobre como a mimese, vista através das lentes das esferas propostas, influencia a percepção geral de uma obra de arte.

A multidimensionalidade da apreciação cinematográfica é outro tema explorado neste artigo, revelando a complexidade das interações entre a forma, a interpretação e a experiência do espectador. Aqui, as ideias de Jacques Rancière (2008/2010) sobre a relação entre arte e política são empregadas para investigar como as esferas de apreciação se influenciam mutuamente.

Além disso, o artigo incorpora as teorias cinematográficas de Bordwell e Thompson (1979/2013), examinando como as técnicas de plano-sequência e posicionamento da câmera podem moldar a percepção da obra. Através do exame do filme Boksuneun Naui Geot (Em Nome da Vingança; Park Chan-wook, 2002), argumenta-se que o cinema é um equilíbrio delicado entre vários mundos, um universo em si.

Em suma, este artigo estabelece um diálogo profundo entre o cinema e o espectador, explorando a capacidade do cinema de evocar sensações e interpretações diversas. Este estudo é um convite para enxergar o cinema não apenas como um veículo de narração de histórias, mas como um espaço vital para explorar emoções, partilhar experiências e refletir sobre a realidade - uma realidade da qual o próprio cinema é parte integrante. Espera-se que a originalidade e a busca por rigor deste trabalho, fundamentados na sólida tradição teórica de estudos publicados, contribuam significativamente para uma maior compreensão da proposta de liberdade individual - esta que é representada em uma breve análise final a partir do filme Johnny Guitar (Ray, 1954) à luz do pensamento rancieriano -, oferecida pelo cinema e, consequentemente, do seu impacto em nosso mundo - que, além de individual, é plural.

2. O Espectador Como Destino

A princípio, todo o diálogo entre um filme e o seu espectador acontece em duas esferas específicas: uma a compreender o entendimento não-formal e outra, a do entendimento formal (Figura 1). Na prática, o primeiro é como uma conversa entre duas pessoas na qual não importam as expressões faciais, o gestual, o olhar ou a intensidade das falas: tudo funciona literalmente como se fosse uma conversa textual na qual a intenção das palavras escritas perde para a funcionalidade literal daquelas palavras. O entendimento formal é, justamente, o contrário: ele está no como as palavras são ditas, nas mínimas pausas entre elas, nos gestos que conduzem as intenções. Por mais que a predisposição seja para uma conversa mais direta e literal com um filme, e não se tenha noção dessa segunda esfera, ela age garantindo um equilíbrio. Mesmo que se parta da ideia de que essas esferas atinjam de maneiras diferentes e subjetivas cada espectador.

Figura 1 Para o processo de metamorfose, a experiência equilibrada entre a esfera não formal e a esfera formal 

Assim sendo, é possível não entender a história de um filme; é possível não entender situações específicas em um filme; mas pode ser perto de impossível fugir dos caminhos escolhidos para a apreciação formal. Porque a forma de uma obra é intrínseca à obra em si. Ela age apesar das funcionalidades literais.

Partindo desse princípio, um exemplo que pode ser claro é a cena de abertura do filme The Conversation (00:00:00-00:03:10), que já fundamenta todo o conjunto da obra. Descrever o que acontece de maneira literal é fácil, ou seja: o entendimento não-formal é simples e não há dificuldade em relatar a sequência de factos.

Na cena, vê-se uma praça a partir de um plano geral em plongée1. Aos poucos, esse plano vai se fechando e deixando à tona um mímico, que faz uma apresentação. Ele acaba por se tornar o protagonista desse momento. Até que, após seguir com mais intensidade um homem - imitando-o como uma sombra -, o sujeito se despede do espectador com um salto e o espectador passa a acompanhar o homem que era imitado.

Susan Sontag (1966/2020), no ensaio “Contra a Interpretação”, comenta exatamente sobre a mimese na arte, relembrando que “[a] primeira teoria da arte, a dos filósofos gregos, propunha que a arte era mimese, imitação da realidade” (p. 15). Mas, além da presença do mímico em cena, talvez seja importante perceber que ele próprio existe somente no contexto do momento e é aparentemente irrelevante - inexistente - ao fim dessa abertura. Apenas aparentemente, porque sua “inexistência” vale-se de um existir para a forma, ela é formal - traz o simbolismo do silêncio necessário para o trabalho do protagonista do filme e, ainda mais, por vestir-se de preto e branco em um filme a cores, carrega consigo o “existir simples”, uma “pura presença do ser”, cedendo o “caráter” da obra, algo como disse André Bazin (1985/2006) sobre o Carlitos de Charles Chaplin:

antes de ter um “caráter”, e essa biografia coerente e fechada que os romancistas e dramaturgos chamam de Destino, Carlitos simplesmente existe. É uma forma branca-e-preta impressa nos sais de prata da película ortocromática. Esse existir simples, essa pura presença do ser, é o que o autor de O Garoto tem de mais precioso para nos oferecer. (p. 37)

É verdade, porém, que toda a descrição da cena não é nada mais do que aquilo que é, de facto, visto. Pode-se, a ela, acrescentar outros detalhes, como a quantidade aproximada de pessoas na praça, o momento em que o tal mímico imita um cachorro (00:01:30-00:01:35), a percepção de que um lado da praça está ensolarado e o outro tomado por sombras. Tudo isso são questões visuais literais; é o que se vê de facto, o que está ali concretamente.

Por outro lado, existe o como essa exposição concreta acontece (Figura 2). Este como pode fazer com que o espectador tenha ferramentas para fundir o seu estabelecido entendimento não-formal com a forma idealizada pela direção de um filme. Nesta forma está incluso tudo aquilo que é pensado para alcançar sensações. Ainda assim, as sensações, ditas, idealizadas podem ou não acontecer. Isso porque não se trata de uma construção literal, mas subjetiva e que estará em contato com um leque de pessoas (o público), que é plural, com formações, vivências, experiências diferentes; é uma subjetivação que está à mercê do espectador e de quem este é no sentido mais amplo; é, acima de tudo, uma subjetivação política.

Figura 2 Continuação do processo de metamorfose 

Sobre esse contato, Jacques Rancière (2008/2010), em O Espectador Emancipado, traz novos ares à questão ao expor uma forma de ligação entre a arte e a política:

arte e política estão ligadas entre si como formas de dissentimento, como operações de reconfiguração da experiência comum do sensível. Há uma estética da política no sentido em que os actos da subjectivação política redefinem o que é visível, o que pode dizer-se sobre o visível e quais sujeitos que são capazes de o fazer. (p. 95)

De todo modo, a subjetividade, ainda assim, é construída por elementos formais. São eles que fazem parte da linguagem do cinema e que foram enraizados por D. W. Griffith (1915) com The Birth of a Nation (O Nascimento de uma Nação), enriquecidos e consolidados por Orson Welles (1941), com Citizen Kane (Cidadão Kane), e que, mesmo firmes e aparentemente completos, continuam evoluindo - especialmente por não se saber, ao certo, de toda a potencialidade do cinema, dada a sua ainda muito curta, mesmo que complexa, história.

Voltando ao The Conversation, a experiência formal com as imagens pode enriquecer a percepção do todo fílmico, por mais que este todo não seja homogêneo. A breve introdução demonstra uma ligação quase hipnótica da idealização do diretor, Francis Ford Coppola, para com o espectador, preparando-o para o desenvolvimento. Tudo, nesse sentido, é tratado com uma lentidão programada: a imagem surge em fade in e, a partir do plano geral em plongée, inicia-se uma aproximação em direção ao mímico em zoom in.

Aliás, não há corte algum durante toda a cena - o que pode alimentar o seu teor hipnótico. A praça, sombreada do lado direito, encaminha o olhar do espectador para o ensolarado lado esquerdo. É ali que, como resultado do zoom in e da movimentação diferenciada do personagem, será encontrado o mímico no meio de tanta gente após o gradativo e sem cortes de fechamento do plano.

Simultaneamente, a música ganha volume de uma maneira capaz de direcionar o espectador para o que é visto e transformar o que é assistido. Por essa perspetiva, tudo se mantém em sintonia: a imagem surge em fade in e segue em zoom in enquanto, ao mesmo tempo, a música começa discreta e ganha volume. Essas relações paralelas e repetidas em mais de uma camada (surgimento da imagem, movimento da imagem, movimento do som) são fundamentais para o poder hipnótico.

Bordwell e Thompson (1979/2013), ao comentarem sobre os efeitos dos planos sem cortes, atestam sobre o poder imersivo dessa opção. Dizem eles que os planos-sequência são particularmente eficazes na criação de uma sensação de realismo e imersão para o espectador, pois o uso de um único plano contínuo pode dar a impressão de que a ação está se desenrolando em tempo real diante de nossos olhos.

Há, em adição, a relação de poder entre a direita e a esquerda de uma imagem e como essa relação pode influenciar a maneira em que o todo é percebido ou sentido - mesmo quando não existe a racionalização do que foi assistido por parte do espectador. Isso porque há uma regra geral, baseada em muitas observações psicofísicas: os elementos na metade direita da cena são percebidos mais rapidamente e com maior acurácia do que os elementos correspondentes na metade esquerda da cena, quando as imagens são apresentadas em campo livre (Grossberg & Mingolla, 1985).

Assim, Coppola, ao escolher filmar com luz natural num horário do dia em que as sombras cobrem o lado direito, induz que o olhar do espectador se direcione e se fixe no lado esquerdo, sugestionando um processo antinatural de percepção por parte do espectador.

Na sequência, quando o espectador já criou alguma ligação com o trabalho do mímico e está a observá-lo de perto, ele (o mímico) vai ao canto esquerdo inferior do plano e encontra aquele que será o personagem central, passando a copiá-lo (00:02:15, 00:02:22). O mímico, então, começa acompanhar aquele homem em direção ao lado superior direito. O homem imitado acelera os passos, interrompendo a lentidão hipnótica da proposta inicial e assumindo posição à direita, deixando o mímico à esquerda (00:02:35-00:02:46). Nesse momento, a câmera deixa de acompanhar o mímico e passa a seguir o homem - que é interpretado por Gene Hackman. O imitador despede-se com um único salto (00:02:56-00:03:00), adentrando na inexistência. Finalmente, os créditos iniciais terminam com o verdadeiro protagonista tendo conseguido o seu lugar após o jogo imagético.

Pode ser perceptível, já nesse ponto, o quanto o entendimento não-formal é diferente do formal. Se o primeiro é ligado ao que se acompanha narrativamente ou, de maneira mais clara, à história e nada mais; o segundo é ligado, como comentado, ao como se vê, ao como é mostrado. O primeiro é um trabalho que já vem delineado pelo roteiro; o segundo é um trabalho da direção. Enquanto um pretende contar uma história, ligar os pontos da história, fazer os diálogos (quando existem) terem sentido dentro do contexto; o outro vai procurar formas expressivas para que isso aconteça, buscar enriquecer a dinâmica de sensações a partir da linguagem, seja ela consolidada ou experimental.

Apesar de tanto, pode-se dizer, novamente, que existe um entendimento que, antes da desconstrução pretendida, parece viver na intersecção entre o formal e o não-formal, agindo à sua maneira, separando-se do regimento dos anseios artísticos: é a individualidade intrínseca a cada espectador. Mas há, então, de iniciar-se um desvincular desse entendimento, uma fragilização das paredes das esferas, porque, como comenta Rancière (2008/2010),

[h]á assim uma política da arte que precede as políticas dos artistas, uma política da arte como repartição singular dos objectos da experiência comum, que opera por si mesma independentemente dos desejos que possam ter os artistas de servir esta ou aquela causa. (p. 96)

Ora, a partir das formas de entendimentos propostas pela direção e em como estas se relacionam com o espectador, podem ser trazidos à tona subtextos que vão além. Estes subtextos fazem parte da interpretação, e qualquer interpretação, por sua vez, pode ser pessoal, particular, e, portanto, não deve estar em primeiro plano para uma argumentação de ideias sobre um filme. Logo, não é sensato tomar o conteúdo literal como sendo o resultado por si e, ao mesmo tempo, nem mesmo a habilidade formal pode ser considerada como a obra plena. Esta está no meio (a princípio). Isso porque há uma tática da arte-como-ser que funciona com a fruição única de elementos singulares e intransferíveis, mesmo que surjam a partir de uma vivência coletiva. Essa é, no caso, a excecional estratégia da arte-como-ser capaz de romper as esferas. Por outro lado, a vida que vem dos múltiplos olhares e que, consequentemente, faz de um filme tantos outros quanto o seu número de espectadores, não pode ser tomada como a plenitude da obra quando esta vida surge da interpretação da esfera não-formal proposta, algo que pode ocorrer com alguma frequência.

Aliás, Sontag (1966/2020) vai além, e com mais firmeza, sobre as múltiplas substâncias possíveis de uma obra e como interpretá-la é uma tarefa limitadora. Diz ela que

[o] que o excesso de ênfase na ideia de conteúdo acarreta é o perpétuo e sempre inconcluso projeto da interpretação. E é o hábito de abordar as obras de arte a fim de interpretá-las que, reciprocamente, sustenta a fantasia de que de fato exista algo que seja o conteúdo de uma obra de arte. (p. 18)

Ademais, retomando a cena de abertura de The Conversation, a presença do mímico na abertura é um símbolo que pode acrescentar valores ao todo, mesmo que não exista uma participação física sua posterior no restante do filme. Um dos símbolos é temático, como abordado anteriormente, visto que o personagem de Hackman trabalha com vigilância - algo que implica silêncio. Há, outrossim, o símbolo sensorial com a mesma importância prática: Coppola, ao escolher o zoom in gradual, relaciona imageticamente os personagens. Tal aproximação pode conduzir, sensorialmente, a uma inconsciente relação de causa e efeito, como no efeito de ancoragem. Este sugere que a forma como um estímulo é apresentado pode influenciar a percepção sobre ele, levando a associações a outras informações (visuais ou não) que estejam presentes no mesmo contexto (Bargh et al., 1996). Um exemplo mais claro talvez seja a exposição de uma modelo junto a um creme dermatológico: fazer uma associação de sua pele aparentemente perfeita como resultado da utilização daquele produto é algo quase instantâneo. Com isso, Coppola realiza essa ligação entre o mímico e o verdadeiro protagonista e, quando o imitador sai de cena, passando um invisível bastão, encerra-se uma apresentação de personagem, que se dá por meio da forma, da esfera formal: há a revelação parcial de uma identidade; a simples ação do novo homem se tornar o centro das atenções ao caminhar sozinho na contramão do fluxo de pessoas pode ilustrar ou replicar o seu desconforto interno; eventualmente, o silêncio diegético que o conectava ao mímico é quebrado quando vozes que fazem parte da sua investigação profissional são ouvidas. Todo esse processo age como interferências no enredo que podem ser racionalizadas, claro, mas são sentidas no âmbito da experiência estética, sendo o espectador o destino do processo escolhido.

3. O Espectador Como Caminho

É possível, em meio a tudo isso, continuar a desconstrução das esferas - ou a fragilização delas - ao dizer que o diálogo entre espectador e filme na esfera do entendimento não-formal é indivisível, isto é, entende-se ou não o que de facto acontece, a história que é contada (quando há uma história). Nele, não há a necessidade de que as sensações transmitam algo ou de qualquer interpretação para a internalização das cenas. Mas a esfera do entendimento formal se subdivide em duas camadas: a das sensações e a das interpretações (tão contestada por Sontag), e ambas podem conter dezenas de nuances.

A camada das sensações é causada pela utilização da forma, do como a direção idealiza as cenas a favor de uma experiência sensorial. Tudo o que se sente ao assistir a um filme é resultado da relação da direção com o roteiro e de como essa relação exibe o que, antes da filmagem, era texto. A segunda camada, das interpretações, tal qual a primeira - mas especialmente -, ultrapassa os filmes e encontra as experiências pessoais, humanas, sociais, políticas de cada espectador. Essa camada, aliás, ao ultrapassar os filmes, não diz respeito à obra, mas somente ao intérprete dela. Consequentemente, é a única questão quase que inteiramente fora do controle de quem cria, por mais que existam

estratégias dos artistas que se propõem transformar as demarcações daquilo que é visível e susceptível de ser enunciado, que querem dar a ver aquilo que não era visto, fazer ver de outra maneira o que era visto de modo demasiado fácil, pôr em relação o que não surgia relacionado, tudo isto com a finalidade de produzir roturas no tecido sensível das percepções e na dinâmica dos afectos. (Rancière, 2008/2010, p. 97)

Isso parece desaguar como um dos possíveis diversos afluentes do cinema, na ideia de que um filme não tem a obrigação de contar uma história ou algo palpável de facto. Como arte, o que um filme necessita, mais intimamente, é estar aberto a experiências. Conjuntamente, essas experiências podem vir a partir de uma obra que contém uma história clássica - com início, meio e fim bem delimitados e expostos em seus atos - ou podem, também, ser o resultado de uma obra que não tem o intuito de contar o que quer que seja.

As relações entre espectador e filme, assim sendo, podem estar à procura de um amadurecimento. Sendo o cinema uma arte recente, é compreensível que o que mais acompanhe o processo de assistir a um filme sejam frutos de outras artes, especialmente, da literatura e da pintura. Gostar ou não de um filme por causa da sua história sugere uma aproximação com uma espécie de apreciação-relatório - aquela que está disponível a perceber o que o filme conta (a esfera não-formal) e o que ele quer dizer com o que conta (a interpretação, camada da esfera formal), nada além.

Há, em completude, o espaço fílmico, tudo aquilo que compreende o que o espectador pode ver e aquilo que não é visível. Toda a experiência sentida pelo espectador, inclusive, pode ser mais complexa a partir do que não está exposto. E o motivo talvez seja simples: enquanto o espaço fílmico que é visível tem somente uma camada - que é exatamente tudo o que é visto -, o não-visível compreende seis subdivisões. São elas: o que está acima, abaixo, ao lado esquerdo e ao lado direito do que é visto - além das bordas da imagem - e o que está na posição da câmera ou atrás dela, frontal à imagem, e o que está atrás do cenário, dos personagens e de objetos. Na prática, o que é visto é como uma tela pintada em movimento e o que não é visto é todo o universo em três dimensões ao redor. Sendo assim, há muito mais a ser explorado por meio do que não se pode ver.

Há cineastas que utilizam com propriedade do espaço fílmico não-visível para compor as sensações e alimentar a conversa entre espectador e filme. Park Chan-wook, por exemplo, é um diretor contemporâneo que utiliza como poucos esse espaço. Em seu Boksuneun Naui Geot (2002), as cenas iniciais podem construir até mesmo uma relação de culpa junto ao espectador. Numa sequência, essa relação pode ser muito nítida quando quatro jovens são mostrados (o espaço visível) enquanto escutam, através de uma parede, os gemidos de uma mulher (que está no espaço não-visível) e se masturbam (00:09:45-00:10:01). A câmera desliza lateralmente em travelling para revelar a mulher (00:10:01-00:10:14). Nesse momento, descobre-se que os gemidos dela são de dor (devido a uma crise renal). A câmera desliza mais um pouco até que revela o irmão da mulher em primeiro plano - o protagonista -, que é surdo e, mesmo estando no mesmo cómodo, não consegue escutar a dor dela, que ainda está visível para o espectador (00:10:14-00:10:26).

Esse jogo com o espaço fílmico pode acontecer de muitas outras formas. Seja com a utilização da profundidade de campo, que é tão expressiva em Citizen Kane, seja para criar suspense, tão bem utilizado por Alfred Hitchcock, ou até mesmo para construir analogias de importância entre os personagens. Nessa questão, quanto mais perto da câmera e no espaço visível alguém está, maior fica com relação a quem está distante da câmera e no espaço visível. Tudo isso faz com que o entendimento formal do espectador, por mais que não esteja agindo conscientemente, esteja sendo alimentado e construído numa relação com o espaço fílmico e, enfim, com o próprio filme.

A potência do cinema, logo, parece-me estar muito mais no espectador. Não por qualquer ineficácia da arte, mas porque, como diz Salomé Coelho (2013), “o potencial de emancipação intelectual do cinema encontra-se na sua ociosidade” (p. 13), sendo esta ociosidade uma questão de chance de reflexão, de poder ter uma experiência estética por meio da qual seja possível idealizar, dar passos em direção à dita emancipação intelectual - o que é o oposto, decerto, da instável imersão quotidiana que, comumente, não permite qualquer estabilidade de pensamentos, inclusive emocional.

Aliás, o cinema que, possivelmente, mais se preocupa com o que está a contar existe como um reflexo da necessidade de remediar a paradoxal falta de estabilidade promovida pela rotina e, assim, surge como uma arte que pretende ser um guia explícito - político, moral e de conhecimento. De outro modo, Coelho (2013) traz essa reflexão ao comentar, justamente, sobre esse processo e a contrapô-lo com a recepção do espectador: “o cinema, enquanto arte, não deve nem cuida de ‘política, nem de moral, nem de conhecimento’, embora não possa colocar-se fora da relação com uma finalidade (permitir a justiça); o cinema, como arte, é pura abertura ao outro” (p. 13).

Mesmo assim - e acredito que seja óbvio -, tudo tem um efeito mais direto quando existe algo a ser contado. A experiência sozinha não deixa de ser uma experiência, mas, acompanhada de uma narrativa, ela pode tornar-se muito mais vívida. Retornando à cena de Boksuneun Naui Geot, o visionamento de jovens a masturbarem-se e a descoberta de que o que eles escutavam no espaço não-visível eram gemidos de dor e não de sexo e, logo depois, a revelação de um homem de costas para a mulher como se não se importasse com tanta dor são momentos causadores de sensações variadas; mas a experiência de perceber essa cena e descobrir que o homem de costas é surdo, que é o irmão dela, e, no decorrer do filme, passar a acompanhá-lo a mover um mundo para conseguir um transplante de rim pode ser muito mais direta, sem a exigência de interpretações maiores.

A união entre o que há para contar e o que há para dizer com o que há para mostrar e o que há para não mostrar deve ser o que existe de mais complexo no todo fílmico. É a junção do conteúdo e da forma. Mesmo assim, se o conteúdo for, de algum modo, incompreensível, a forma existe para causar sensações. Como aludido, é possível não entender a história de um filme, é possível não entender situações específicas num filme, mas pode ser impossível fugir dos caminhos escolhidos para a apreciação formal. Novamente: porque a forma de uma obra é intrínseca à obra em si, ela age acima das funcionalidades literais.

4. O Espectador Como Personagem

Entretanto, se “o real é sempre o objecto de uma ficção, ou seja, de uma construção do espaço onde se entrelaçam o visível, o dizível e o fazível” (Rancière, 2008/2010, p. 112), há de se estabelecer uma relação final entre o efetivo real (o espectador com sua possibilidade e capacidade de emancipar-se) e uma figura, com efeito, ficcional. Isto posto, há uma construção entre os entendimentos nãoformal e formal que pode resumir o que foi demonstrado até aqui: a construção do personagem Old Tom (interpretado por John Carradine) no filme Johnny Guitar (Ray, 1954). Ele (Old Tom) pode ser visto como um espectador dentro da própria obra. Se, inicialmente, ele se posiciona numa pequena sala e tem contato com a protagonista, Vienna (Joan Crawford), por uma janela, essa mesma janela serve para localizá-lo exatamente, como alguém que assiste (a)os passos daquela mulher.

O trabalho da direção de Nicholas Ray (1954) em unir o visível e o não-visível de sua forma fílmica com o espaço extrafilme, este que é de autorreconhecimento por parte do espectador, é ressaltado nas palavras de Old Tom pouco antes de morrer: “ninguém me percebe. Eu sou apenas parte da mobília” (01:08:15- 01:08:19). É uma entrega como essa que, à frente de um filme, é necessária para a absorção da completude de uma arte como a do cinema. Ser parte da mobília, seja do cinema, do próprio lar ou de qualquer lugar em que se esteja, é um caminho para se ter um diálogo sincero e completo com tudo o que é não-formal e formal. Quiçá, a emancipação enquanto espectador seja a da compreensão de que a possibilidade de ser emancipado existe quando existe, paralelamente, ao se deixar levar. Porque “[n]ão existe real em si, mas sim configurações daquilo que nos é dado como o nosso real, como objecto das nossas percepções, dos nossos pensamentos e das nossas intervenções” (Rancière, 2008/2010, p. 112). Esta é uma liberdade proposta pelo cinema.

Contrariamente, no meio do caminho, assistir a um filme pensando ativamente e decifrando-o como se estivesse com uma cartilha nas mãos é estar preso. Impedir que toda a subjetividade do cinema aja e não perceber o que se assiste como sendo um universo próprio, com regras próprias e sem a necessidade da realidade usual (por não existir o citado real em si, “mas sim configurações daquilo que nos é dado como nosso real”; Rancière, 2008/2010, p. 112) é estar preso em um mundo exato demais. E nenhuma arte é uma matéria exata.

Então, finalmente, o espectador poderá, ao se dar conta de que faz parte do filme - a partir do seu espaço próprio, extrafilme -, sentir-se nas últimas palavras do Old Tom: “veja! Todo mundo está olhando para mim! É a primeira vez que me sinto importante” (01:16:10-01:16:20). Esta, enfim, é a importância que todo espectador tem: a de ser parte do filme, mesmo que por uma, duas, três ou quatro horas... às vezes, mais. O que mais importa é o resultado da conversa entre um filme e o seu espectador (Figura 3). E este pode ser extraordinário quando os entendimentos não-formal e formal, enfim, fundamentam uma esfera que se rompe e torna-se aberta: a possibilidades infinitas, a uma experiência única de liberdade.

Figura 3 A esfera aberta da liberdade 

5. Conclusão

O presente estudo explorou a relação complexa e multifacetada entre cinema e espectador, oferecendo uma análise abrangente que levou em consideração tanto os elementos formais quanto os conteúdos fílmicos. O estudo centrou-se inicialmente no filme The Conversation, usando-o como um estudo de caso para analisar a interação de esferas não-formais e formais e, posteriormente, trazendo à tona as possibilidades subtextuais e políticas.

Tais esferas propostas por este estudo oferecem uma nova maneira de compreender a relação entre o cinema e o espectador; elas permitem uma análise visual complexa. Com isso, reconhece-se que o espectador não é um receptor passivo, mas sim um agente ativo, como propõe Jacques Rancière (2008/2010), e que interage com o filme em múltiplas camadas de entendimento.

A figura do espectador, ainda, é apresentada como destino, caminho e personagem, configurando-se como elemento central na experiência cinematográfica. Como destino, o espectador é o fim último da obra fílmica, o receptor para quem a narrativa é construída e a quem a arte do cinema busca alcançar. Nesse sentido, cada escolha na produção cinematográfica é feita levando em conta a experiência do espectador, como se cada elemento do filme estivesse direcionado a ele. Como caminho, o espectador é a via pela qual a obra de arte adquire vida, sendo suas emoções, pensamentos e reações parte integrante do processo de dar sentido à obra. A sua participação ativa na interpretação da obra é o que a torna viva e relevante. Por fim, o espectador como personagem remete à ideia de que, ao interagir com o filme, o espectador entra em uma espécie de diálogo com a obra, desempenhando um papel ativo na narrativa, com suas próprias respostas e interpretações, criando assim um cenário rico de múltiplos significados.

Na construção deste trabalho, teve-se como base a contribuição de autores como o próprio Rancière (2008/2010), Susan Sontag (1966/2020), David Bordwell e Kristin Thompson (1979/2013), dando continuidade e ampliando os seus pensamentos. O diálogo com esses autores fornece um alicerce sólido e enriquecedor para a compreensão das interações entre a forma e o conteúdo no cinema, a mimese na arte e a política na estética.

Em suma, o estudo enfatizou a importância de abordar o cinema e outras formas de arte com uma mentalidade aberta e receptiva, reconhecendo as várias camadas de significado que podem coexistir dentro de uma única obra. Ele evidencia a necessidade de uma compreensão mais matizada da arte cinematográfica e aprofunda-se nas possibilidades de interpretação, expressão e conexão emocional. Esta investigação, por fim, convida a uma reflexão contínua sobre o papel e o impacto do cinema nas vidas individuais e na sociedade; é um lembrete de que a arte é um meio dinâmico, complexo e poderoso de expressão e comunicação, cuja apreciação requer tanto a sensibilidade do espectador - esta que permanece à vontade de sua disponibilidade particular - quanto toda liberdade que lhe cabe por meio de quem ele - o espectador - é.

Referências

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1Plongée é uma palavra em francês que se traduz para “mergulho” ou “imersão” em português. No contexto cinematográfico, refere-se a um ângulo de câmera em que a lente está apontada de cima para baixo, criando uma perspectiva que parece mergulhar ou cair em direção ao assunto ou cena filmada

Recebido: 04 de Março de 2023; Revisado: 28 de Junho de 2023; Aceito: 28 de Junho de 2023

Pedro Barbosa é mestrando em estudos de arte da Universidade do Porto, atuando na linha de pesquisa teoria e crítica da arte na Faculdade de Belas Artes da referida universidade; pós-graduado em cinema e linguagem audiovisual; membro da Associação de Críticos de Cinema do Rio de Janeiro e ex-presidente da Associação de Críticos de Cinema do Rio Grande do Norte. É colunista do jornal O Figueirense e compositor da Sonictracs. Email: sihanfelix@gmail.com Morada: Av. de Rodrigues de Freitas 265, 4049-021 Porto, Portugal

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