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New Trends in Qualitative Research

versão On-line ISSN 2184-7770

NTQR vol.14  Oliveira de Azeméis set. 2022  Epub 01-Ago-2022

https://doi.org/10.36367/ntqr.14.2022.e623 

Artigo Original

Transformações das práticas e percepções do graffiti nas cidades: de transgressão urbana a arte comercializada

Transformations of practices and perceptions of graffiti in cities: from urban transgression to commercialized art.

Raquel da Silva Bastos,1 
http://orcid.org/0000-0002-6379-1474

Sávio Tadeu Guimarães,1 
http://orcid.org/0000-0002-6604-2671

Manuel Garcia Docampo,2 
http://orcid.org/0000-0001-8401-233X

1 Faculdade de Tecnologia e Ciências Sociais Aplicadas do Centro Universitário de Brasília, Brasil.

2 Faculdade de Sociologia da Universidade da Coruña, Espanha


Resumo:

O presente estudo tem como foco de análise a expressão artístico-cultural do graffiti abordado a partir de uma pesquisa iniciada na cidade de Brasília. Entre os objetivos se destaca a busca por assimilações dessa modalidade de expressão nas cidades, nos espaços públicos de suas paisagens urbanas e, mais recentemente, em ambiências privadas. Como método da abordagem qualitativa adotada na condução do estudo, foi sistematizada uma diretriz investigativa que, inicialmente, perpassou ao referencial teórico utilizado sobre o objeto temático uma identificação e categorização de três grupos sociais distintos no que se refere à sua relação com as intervenções realizadas no espaço público e privado por meio das expressões em graffiti; em seguida, foi elaborado um instrumento misto, voltado às assimilações do graffiti por parte dos três grupos de atores sociais em questão e, por fim, a aplicação dessa ferramenta e a posterior análise de seus dados amparada no aporte teórico inicialmente utilizado permitiram o alcance de resultados esperados, como a identificação de similaridades e distinções no que diz respeito à assimilação do graffiti pelos sujeitos participantes da pesquisa. Além das reflexões vinculadas tanto à literatura especializada sobre a temática do graffiti quanto à sua normativa em nossa localidade de estudo, consideramos ter sido também substancial para o direcionamento da investigação as reflexões complementares que pudemos acrescer ao estudo por meio das respostas do público participante. Estas nos permitiram ultrapassar a objetividade de um estudo sobre o tema na atualidade ou em uma localidade e percebê-lo a partir das nuances subjetivas dos grupos de atores que, de algum modo, transformam e são transformados por esse campo e que foram sensíveis à atenção a eles solicitada sob circunstâncias tão específicas e difíceis como as vivenciadas por todos desde 2020.

Palabras clave: Graffiti; arte urbana; investigação qualitativa; atores sociais

ABSTRACT

Abstract: The present study focuses on the artistic-cultural expression of graffiti approached from a research initiated in the city of Brasília. Among the objectives, these archfor assimilation of this modality of expression in cities, in the public spaces of their urban landscapes and, more recently, in prívate environments stands out. As a method of qualitative approach adopted in conducting the study, an investigative guide line was systematized that, initially, permeated the theoretical framework used on the thematic object with an identification and categorization of three distinct social groups with regard to their relationship with the interventions carried out in the public and prívate space through graffiti expressions; then, a mixed questionnaire aimed at the assimilation of graffiti by the three groups of social actors in question was elaborated and, finally, the application of this tool and the subsequent analysis of its data supported by the theoretical contribution initially used allowed the reach of expected results, such as the identification of similarities and distinctions regarding the assimilation of graffiti by the groups of actors participating in the research. In addition to the reflections linked to both the specialized literatura on the subject of graffiti and its regulations in our study location, we consider that the complementary reflections that we were able to add to the study through the responses of the participating public were also substantial for directing the investigation. Allowed us to go beyond the objectivity of a study on the subject at present or in a locality and perceive it from the subjective nuances of the groups of actors that, in someway, transform and are transformed by this field and that were sensitive to the attention to them requested under circumstances as specific and difficult as those experienced by every one since 2020.

Keywords: Graffiti; urban art; qualitative research; social actors.

1.Introdução

Buscar assimilações da cidade, seja de seu espaço público ou privado, vai de encontro a interpretações que, em maior ou menor grau, perpassam as paisagens onde se fazem presentes as mais variadas expressões culturais e artísticas, sejam elas constituintes da caracterização de uma cidade, sejam elas a própria cidade vista como um produto sociocultural, conforme já há muito vem sendo considerado (Argan, 2005; Manguel, 2001; Wisnik, 2018). Entre tantos focos de análise possível, na atualidade, não há como não nos atentarmos, por exemplo, à manifestação artístico-cultural do graffiti, expressão que, em sua origem, constituiu o Movimento Hip-Hop, iniciado nos anos 1960, em Nova Iorque, por grupos periféricos da cidade que utilizavam as artes envolvidas (DJ, RAP, Break Dance, Graffiti) como agente político e social.

Por consequência de seu surgimento suburbano, o movimento foi marginalizado e até criminalizado; no Brasil, em 1998, houve sanção do graffiti pelo Art. 65 da Lei n° 9.605, de 12 de fevereiro, que criminalizava graffiti e pichação, podendo sua produção resultar em uma multa e detenção de 3 a 12 meses de prisão. Todavia, em 25 de maio de 2011 foi instituída a Lei n°12.408, que alterou o Art. 65 da Lei n° 9.605 descriminalizando o graffiti, uma vez que este fosse realizado com intuito de “revitalizar” e “valorizar” o patrimônio público.

Este artigo resulta de uma pesquisa idealizada a partir da soma das experiências vivenciadas pela coautora no âmbito das práticas de graffiti aos interesses investigativos dos demais coautores, provenientes de campos profissionais distintos, mas vinculados a este universo que vem se configurando como um dos segmentos artístico-culturais contemporâneos de grande expressão e múltiplos significados.

Para proceder tal exercício investigativo, a partir de uma ampliação do referencial teórico inicialmente utilizado como fonte de aprofundamento das considerações sobre o objeto temático, foi pensado como um procedimento de conhecimento complementar a identificação de sujeitos participantes de grupos sociais distintos no que se refere à sua relação com as intervenções realizadas, seja no espaço público ou privado, por meio das expressões em graffiti. Posteriormente, a realização de uma pesquisa sobre as percepções dessa modalidade de expressão artística partindo desses distintos grupos permitiu ampliar as reflexões sobre o objeto, seu campo e sujeitos correlacionados ao tema.

Ao evidenciar e correlacionar pontos de vista de vários atores ou agentes de algum modo envolvidos no âmbito desta expressão artístico-cultural (grafiteiros, patrocinadores de graffiti e o público receptor) foi possível, de fato, ampliar a reflexão sobre como as noções sobre esta expressão artístico-cultural se vincula a imaginários e expectativas por vezes distintas no que se refere ao graffiti expresso no espaço público e aquele expresso no espaço privado; nos aproximamos, assim do alcance do objetivo lançado, identificar assimilações do graffiti por tais grupos nestas duas categorias espaciais. Numa linha de mão- dupla também foi possível perceber como artistas vinculados a essa modalidade de expressão inicialmente contestatória mantêm sua visão artística mesmo nos casos de expressões no espaço privado mediante trabalhos encomendados ou patrocinados, ao passo que a percepção da opinião pública (sejam patrocinadores ou espectadores) vem sendo alterada gradativamente no sentido de uma assimilação mais favorável à expressão do graffiti como arte.

De certo modo, permeou a condução de nosso caminho de pesquisa aquela consideração feita por Arendt (2007), em seu célebre A Condição Humana, de que o ambiente público é incapaz de abrigar o irrelevante. Partilhando dessa consideração, podemos conjecturar que uma intervenção urbana como a do graffiti pode até passar despercebida no dia-a-dia da maioria das pessoas, entretanto, a subjetividade inerente aos afetos e à memória sempre permitirá o acionamento de gatilhos pessoais ou coletivos em diversas escalas; e quando consideramos as obras de graffiti monumentais e/ou impactantes e/ou elaborados por nomes já céleres, estes podem vir a serem assimilados até mesmo como pontos de referência de uma localidade, como tem acontecido mundo afora.

Já no meio privado, o graffiti tem sido levado para tal ambiente geralmente sendo associado às artes plásticas e sob temáticas serenas, o que permite uma valorização de sua dimensão estética ao passo que contribui para o esvaziamento das tantas intenções trazidas por tal expressão em sua origem como arte urbana, provocativa/transgressora e gratuita/acessível. Sob esse contexto, no presente estudo, pautando-nos nessas e outras dimensões do graffiti, assimilado como uma expressão artístico-cultural, podemos nos aproximar de opiniões sobre tal expressão que se divergem no que tange à sua intencionalidade, à sua realização, seja na esfera pública ou privada, assim como aos seus desdobramentos no contexto espacial onde é realizado.

2.De Nova York a Brasília - algumas considerações sobre o Graffiti

Uma das questões que se colocam com mais frequência e cuja resposta não é evidente, é a seguinte: «quem é o público das mensagens que encontramos nos muros da cidade?» Aparentemente, o público do graffiti não é muito diferente daquele a que se dirigem as mensagens publicitárias. Ou seja, pretende chegar a todos, embora só alguns se sintam verdadeiramente inspirados ou tocados por aquilo que vêem e lêem (Campos, 2007, p. 256).

As opiniões sobre a origem do graffiti são divergentes. Para entender essa divergência pode ser coerente identificá-lo de duas maneiras, a primeira como ato de “se comunicar” e a segunda como ato de “transgredir”; essas duas definições se fazem mais pertinentes, obviamente, se consideradas como complementares. Se pensarmos em sua dimensão de comunicação, o graffiti teria seus primeiros registros na Pré-história. Contudo, se considerarmos o graffiti sobretudo pela ação de transgressão que o caracteriza, tal expressão talvez tenha mesmo seus primeiros registros em 1942, com o artista KILROY, que participou da Segunda Guerra Mundial e se tornou célebre após escrever em suas bombas a expressão “KILROY WAS HERE”. Mas foi nos anos 1970 que o graffiti ganhou força na cena norte- americana, especialmente em Nova Iorque, onde crescentemente vários jovens passaram a “marcar” tal cidade com graffitis, personagens ou letras. E, a partir de então, esse fenômeno de ocupar o espaço urbano foi se popularizando tanto pelo sentido comunicacional como pelo ato de transgredir, passando a ocupar não apenas o espaço público como o privado e ganhando, cada vez mais, relevância cultural, assim como, gerando situações e registros diversos (Silver, 1983; Tomaz, 2010; Mesquitae Valiengo, 2011; Silva, 2014; Queiroz, 2018). Cabe ressaltar, no âmbito dessas transformações, que os impasses em tentativas de conceituação de caráter universalizante sobre o graffiti também se justificam por suas reassimilações crescentes (Blanco e Souza 2020; Goulart, 2017; Fontes, 2012), seja pela dimensão educativa assumida pelos mesmos, seja pela dimensão de efemeridade a ele vinculada sobretudo em suas origens e que vem assumindo um caráter de permanência no espaço sobre o qual foram criados em razão de muitas de suas representações mais emblemáticas se consolidarem como marcos ou marcas, sejam essas obras de graffiti insurgentes ou patrocinadas.

Sob esse contexto, o que se pode afirmar é que o graffiti vem, de fato, se difundindo globalmente, desde a internacionalização de nomes como os de Jean-Michel Basquiat e Keith Haring até à recente midiatização de obras como as dos brasileiros Kobra e Nina Pandolfo, da equatoriana Lady Pink, do português Vhils, dos espanhóis Arys e La Tonta del Bote, dos iranianos Know Hope e Shamsia entre tantos outros, além, evidentemente, dos ingleses tão célebres quanto anônimos em sua identidade, Bambi e Banksy. Ressaltemos ainda as espacialidades urbanas crescentemente ressignificadas pela presença massiva de graffiti elaborados por autores diversos como, por exemplo, o chamado “Beco do Batman”, na cidade de São Paulo, ou os mirantes demarcados pelo Circuito Urbano de Arte (CURA) em Belo Horizonte para a visualização de obras de graffiti expressas nas medianeiras dos edificios do centro da cidade, além de casos internacionais, como o museu a céu aberto criado pela Oficina Municipal del Grafiti ao promover mais de quarenta obras na cidade espanhola de Múrcia, ou a própria cidade chilena de Val Paraíso, onde o graffiti agregou novos interesses à já característica arquitetura vernacular da localidade. Decerto, desde as primeiras experiências nova-iorquinas, o grafitti deixou de ser apenas um fenômeno local tornando-se uma das mais fortes expressões da arte contemporânea mundial, que agora faz o caminho inverso da arte institucionalizada dos museus que, no século XX, buscava o espaço público a partir de seus porta-vozes mais inquietos que geraram linhas como a da Land Art por exemplo.

Sob tais transformações na esfera do fenômeno investigado, cabe ressaltar, ainda, que pelo advento das redes sociais, exponencia-se a possibilidade de nos aproximarmos ou “enxergarmos” mais conteúdos mesmo não estando presente, por exemplo, no local onde se encontra a obra original, ainda que se pese a já tão debatida questão da originalidade e sua cópia (Benjamin, 1987).

O fato é que, também por essa razão, o graffiti vem se popularizando e alcançando diversos grupos sociais que não só passaram a naturalizar a obra, como também o estilo de vida do artista urbano e seu caráter transgressor em suas origens que, como tantas expressões, vem sendo integrado dinâmicas do sistema de produção capitalista.

Tratando aqui do graffiti a partir de obras diversas executadas numa localidade específica, a cidade de Brasília, local de origem da pesquisa que ensejou este artigo e que tem sido o espaço de expressão artística de um de seus autores (Figuras 1 e 2), assim como de muitos outros artistas locais (Figuras 3 e 4), de artistas já célebres mundialmente (Figura 5), uma cidade que já promove até mesmo exposições sobre graffiti (Figura 6), se faz pertinente ressaltar algumas considerações após esse breve panorama visual do graffiti em Brasília.

Figura 1 

Figura 2  Produção do graffiti ‘Não’, de Raquel Bastos (Dama), no Beco do Rato, em Brasília. Fonte. Rede social da autora do graffiti 

Figura 3 Graffiti de Bass, no Beco do Rato em Brasília. Fonte. Rede social do autor do graffiti. 

Figura 4 Graffiti de Toys, em área urbanade Brasília. Fonte. Rede social do autor do graffiti. 

Figura 5 Graffiti de Os Gêmeos, em viaduto de Brasília. Fonte. https://www.google.com/search?q=grafite+os+ gemeos+em+bras%C3%ADlia&sxsrf=APq-WBuwliY-> 

Figura 6 Exposição Graffiti no Museu da República, Brasília. Fonte. <http://www.olharbrasilia.com/2017/06/16/ mundez/> 

De início, devido à configuração urbana desta cidade, o graffiti dialoga com o espaço urbano de modo “às vezes” distinto de outras cidades. Uma característica urbana de Brasília que, por exemplo, influencia a cultura do graffiti é a presença de grandes espaços vazios.

A horizontalidade da cidade “sem muros”, pontuada por elementos monumentais marcados por uma forte dimensão artística já patrimonializada e por fortes forças de poder e, vigilância ali onipresente, dificulta, decerto, intervenções de graffiti ou de tantas outras expressões artístico-culturais não autorizadas por um poder institucionalizado. Contudo, nos tantos interstícios da cidade, entre seus muitos vazios urbanos, difundem-se expressões de graffiti, assim como em espaços de seu subsolo menos vigiado ou menos (re)conhecido por tantos (Lannes, 2017; Zarur, 2017; Magon, 2019).

Sob o contexto particular de Brasília, também se faz pertinente pontuar que a Secretaria da Cultura do Distrito Federal promove editais que apóiam os artistas urbanos. Entre esses incentivos estão o projeto Obra a Frente, que formulou uma plataforma que conecta, de um lado, habitantes que querem ter o exterior de suas propriedades pintados e, de outro lado, artistas que estão à procura de espaços urbanos para intervir com seu trabalho. Esses editais surgiram após a movimentação dos artistas contra a Lei Distrital n° 6.094/2018, que punia grafiteiros e pixadores em valores a pagar caso pintassem espaços públicos sem autorização. Especificamente, foram cerca de 50 grafiteiros e grafiteiras que se reuniram e apresentaram contra-propostas em relação a tal lei e, a partir daí, foi elaborado um decreto de valorização do graffiti no Distrito Federal - o Decreto n° 39.174/2018 - que prevê um encontro de graffiti por ano e, desde então, ocorreram três encontros, o primeiro nas entradas do Parque da Cidade, o segundo na Comunidade do Sol Nascente e o terceiro no Setor Comercial Sul.

Ao considerarmos as cidades como uma resposta a práticas e representações culturais específicas (Chartier, 1988; Arantes, 2000), ressaltam-se as peculiaridades de cada cidade. Nesse sentido, tendo como foco os espaços grafitados de uma cidade tão específica como Brasília, ainda que seja pertinente evidenciar as particularidades brasilienses vinculadas ao âmbito do graffiti ressaltadas acima, questões gerais vinculadas ao universo do graffiti também são ali percebidas. Considerações e constatações como essas, vinculadas à expressão artístico-cultural do graffiti e a sua presença na cidade de Brasília, nos instigaram, sobremodo, a reflexão acerca de que fatores influenciam “a viabilização, a produção e a fruição” das obras de graffiti, assim como, evidentemente, que atores sociais podem ser considerados mais diretamente envolvidos a essas vertentes de consideração do graffiti e, ainda, como as obras de graffiti tem sido por eles assimiladas em espaços públicos e privados.

3.A construção de um caminho metodológico

O objetivo é uma compreensão detalhada das crenças, atitudes, valores e motivações, em relação aos comportamentos das pessoas em contextos sociais específicos (Gaskell e Bauer, 2003, p.65).

3.1 Sobre os sujeitos acionados na investigação do fenômeno

Se partirmos de uma abordagem qualitativa de investigação, tanto o pensamento condutor do estudo quanto sua estruturação ou sistematização podem se configurar sob essa base de raciocínio e ação atentas a realidades múltiplas, ao empírico, às diferenças. No presente estudo, ancorado na temática do graffiti, podemos evidenciar que são muitos os modos possíveis de se aproximar da cultura que envolve uma expressão de caráter artístico manifesta em um determinado lugar, desde os crescentes estudos produzidos sobre o tema (Quemin, Fialho e Moraes, 2014; Coelho, 2009), a roteiros ou derivas (Debord, 1997) pela cidade que nos permitam perceber como tal expressão artístico-cultural ocupa uma cidade e interage com seu meio urbano específico. Obviamente, se a subjetividade inerente a uma obra do gênio criativo humano legitima nossa liberdade interpretativa, no caso da arte urbana, tão vinculada à efemeridade de um meio em constante mudanças e atualizações, essa possibilidade é potencializada sobremodo e multiplicam-se as interpretações, “não somos espectadores urbanos, mas sim atores que continuamente dialogamos com seus muros” (Canevacci, 1993, p.22).

E em meio a esse diálogo, ou possíveis diálogos, ao nos aproximarmos do campo do graffiti, foi que consideramos pertinente uma atenção a atores sociais ou agentes comunicadores, participantes diretos desse processo.

Ainda que vários outros grupos interventores ou críticos da espacialidade urbana pudessem ter sido considerados como os sujeitos a serem inquiridos nesta pesquisa, tal como arquitetos e urbanistas, geógrafos, sociólogos e críticos de arte, por exemplo, optou-se por dar voz a outros grupos que não tendem a ter suas vozes ouvidas em muitas investigações sobre o tema e que consistem em grupos de participantes representativos de três universos de narrativas fundamentais para a exploração ampliada do objeto: atores executores do processo; autores do objeto e atores receptores do objeto. Mas cabe ressaltar que as vozes de atores dos campos profissionais acima elencados também se encontram aqui presentes em razão de boa parte das referências bibliográficas utilizadas nesta pesquisa como auxílio na compreensão da temática vir, justamente, de autores desses referidos campos.

Assim, entre outras possibilidades de categorização, consideramos profícua aos objetivos da investigação considerar três grandes grupos de atores passíveis de auxílio na reflexão sobre a esfera do graffiti, ainda que tais atores possam figurar em mais de grupo ao assumir mais de um papel no campo. Dessa maneira, inicialmente, consideramos como pertinente para o melhor entendimento do campo, uma atenção ao “artista”, criador da arte, que a idealiza por intenções diversas, em seguida, consideramos o “público” em geral que visualiza o graffiti em algum lugar, aquele espectador que pode se tornar um fruidor de uma obra ou que simplesmente se depara com uma obra pela cidade em seu percurso casual ou cotidiano e, consideramos também, como um grupo de atores eventual, o “patrocinador” dessa arte, que hoje se faz presente em muitos casos na figura, por exemplo, de um comerciante ou instituição de fomento à arte e cultura. Além do referencial bibliográfico de aporte, a prática e experiência prévias da primeira coautora deste artigo, como artista grafiteira, auxiliou, substancialmente, nas percepções iniciais dos meandros do campo até que a participação mais direta deste grupo de atores foi trazida ao estudo por meio do instrumento de participação adotado, base para uma abordagem de base qualitativa passível de expressões pessoais dos inquiridos sobre o fenômeno investigado.

Tendo considerado este grupo de atores sociais para direcionar suas falas aos objetivos traçados pela pesquisa - identificar a assimilação desses sujeitos sobre o graffiti em espaços públicos e privados - o caminho metodológico seguiu em direção à escolha dos procedimentos possíveis para acioná-los ou “trazê-los” à participação na pesquisa. É fato que campos de conhecimento, como o da própria investigação científica, estão cada vez mais abertos a experimentações voltadas a ampliar ou a se aproximar da realidade específica sobre a qual se concentram seus esforços de pesquisa. Partindo de um instrumental tradicional ou não, utilizando-os presencialmente ou de modo remoto pelas possibilidades tecnológico-informacionais e pelas necessidades em um momento pandêmico, o procedimento de investigação gerador do estudo aqui apresentado, ainda que tenha permeado dados quantitativos e qualitativos em um dos momentos da análise, se constituiu sob uma base qualitativa tanto em sua estrutura configuradora quanto em suas várias fases de condução ou de direcionamento.

Sabemos que questionários e entrevistas, como outras ferramentas acionadas em uma investigação possuem papel de relevância na elaboração de uma pesquisa de base qualitativa, atenta a realidades particulares, “a entrevista qualitativa, pois, fornece os dados básicos para o desenvolvimento e compreensão das relações entre os atores sociais e sua situação” (Gaskell e Bauer, 2003, p.65). Ainda que de uma entrevista presencial, como inicialmente idealizado, tenha sido considerada problemática por ocasião da pandemia de COVID-19 e cronograma a seguir em 2020 sob um edital de pesquisa, foi buscada uma opção metodológica considerada pertinente para minimizar as alterações e se direcionar ao alcance dos objetivos propostos na pesquisa geradora deste artigo. Nesse contexto, dentro do universo amostral alcançado, de 86 sujeitos participantes da pesquisa mediante plataformas online que responderam ao questionário misto, idealizado sob uma configuração de perguntas fechadas e abertas. A partir dessas respostas que complementaram a base de conhecimento e dados conformada inicialmente por referências bibliográficas, pudemos analisar, de modo geral, em que pontos as opiniões dos três grupos de atores sociais distintos entram em concordância ou não e, particularmente, nos foi possível analisar como essas opiniões influenciam na formação de um senso comum sobre graffiti e sua presença no espaço público e privado, entre outras questões já abordadas pela crítica especializada e literatura sobre o tema ou que emergiram entre as respostas dos próprios inquiridos.

Quanto às questões eventualmente trazidas pelos participantes, sua possibilidade se fez presente a partir da estrutura semi-aberta adotada no instrumento de participação social configurado na pesquisa por meio do questionário misto tanto no ‘formato das questões lançadas’ quanto na ‘tipologia de respostas possíveis’: fechadas em sua primeira parte, mas abertas em sua parte final.

Este questionário misto, adotado como instrumento de coleta de dados, possibilita diminuir-se a rigidez da estrutura de um questionário com questões fechadas, uma vez que perguntas abertas permitem maior flexibilidade nas respostas do público inquirido, o qual, dessa maneira, pode fornecer dados para uma investigação qualitativa considerando a possibilidade de expressão de valores, sentimentos, percepções e expectativas em relação ao fenômeno investigado (Creswell, 2021; Minayo, 2011; Guerra, 2006; Mello, 2004).

Tendo sido a investigação qualitativa considerada pertinente para o alcance dos objetivos almejados, a pesquisa que desenhamos segue uma estratégia híbrida, incorporando elementos quantificáveis a uma abordagem básica puramente qualitativa, ou seja, elementos quantificáveis qualificados pela expressão voluntária dos sujeitos participantes da pesquisa. A abordagem, como primeiro passo relevante que define a metodologia a ser seguida (Taylor e Bogdan, 1992), é qualitativa. O procedimento de amostragem é qualitativo, baseado na seleção de narrativas dos três tipos de atores presentes diante do objeto estudado. Para tanto, segue-se o modelo ator-processo-objeto (Latour, 2005), distinguindo os três papéis mencionados e diferenciados: o ator patrono que promove o processo; o ator executor do processo e autor do objeto e, por fim, o ator receptor, que percebe, a partir de uma ampla gama de posições, valorizando ou não o objeto grafitado. Assim, trata-se de criar uma caixa tipológica com base nas variáveis independentes que estruturam a percepção desses participantes sobre a realidade/objeto estudado.

Dessa maneira, a coleta de dados resulta da combinação de dados quantitativos e qualitativos permitindo que a análise dos dados seja realizada à luz dos conteúdos dos discursos e dos dados quantificáveis obtidos. Essa coleta de dados combina itens discretos com perguntas não estruturadas, resposta livre e ampla. Dessa forma, é possível que, na fase analítica, algumas sínteses quantificadas sejam adicionadas às informações fornecidas por cada narrativa, o que permite observar o peso de cada discurso. O valor, porém, é qualitativo, pois não há amostragem estatística; é de natureza hermenêutica, algumas vezes sintetizada em gráficos claramente inteligíveis em uma leitura rápida (Heller e Feher, 1989). Já o processo de codificação dos dados assim adquiridos, foi trabalhado pelos três investigadores participantes da pesquisa segundo uma abordagem indutiva na busca de fatos auxiliares na compreensão do objeto (Marconi e Lakatos, 2019).

Foi a partir dessas premissas da pesquisa de base qualitativa, que se procedeu a elaboração do instrumento de indagação aos três grupos de participantes buscados, com trechos específicos para a identificação e expressão de cada um dos três grandes grupos sociais categorizados no estudo como os mais abrangentes no âmbito do objeto analisado e, também, passíveis de entregarem respostas aos questionamentos idealizados inicialmente, que direcionaram as investigações. Esses três grandes grupos de atores sociais, os artistas urbanos, os patrocinadores de suas obras e o público espectador-fruidor de suas obras, foram acionados no ano de 2020 tendo como base questões passíveis de contribuírem na construção do conhecimento do campo, que se configurou inicialmente por referências bibliográficas afins.

Cabe especificar que um único questionário foi utilizado para os três grupos de sujeitos vinculados ao fenômeno, tendo sido tal instrument configurado, de início, a interpretações gerais sobre a temática do graffiti e, em seguida, por indagações específicas a grupos distintos que poderia trazer à luz peculiaridades do grupo - nesse último caso, deixando ao participante da pesquisa (identificado por nome e e-mail, faixa etária e cidade) a possibilidade de responder, além das questões gerais, aquelas específicas à categoria ou categorias em que se via inserido. Tal procedimento permitiu diferenciá-los e, consequentemente, realizar uma triagem dos mesmos em relação aos três grupos categorizados e buscados como fonte de informação e reflexão.

Também cabe ressaltar que esse instrumento utilizado para alcançar a desejada confiança e participação de atores sociais evidenciou aos mesmos, em seu Termo de Consentimento inicial, que os procedimentos adotados na pesquisa obedeceriam aos Critérios da Ética em Pesquisa com Seres Humanos conforme Resolução n° 466/12 do Conselho Nacional de Saúde com aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa do Centro Universitário de Brasília, instituição que a promoveu em seu programa anual de Pesquisas, entre 2019 e 2020.

E quanto à confiança nos dados dos inquiridos, uma vez que o instrumento foi lançado online, sua distribuição partiu, inicialmente, para grafiteiros de Brasília e promotores de graffiti locais buscando garantir a presença/participação desses atores da localidade na pesquisa e, em seguida, a distribuição seguiu para um público indistinto, buscando o terceiro grupo de atores, por meio de seu compartilhamento em redes sociais diversas durante um período de quatro meses.

Entre tantas informações almejadas foram indagadas aos participantes questões sobre sua eventual percepção em relação às intervenções urbanas na cidade ao percorrer tal meio, quais tipologias de intervenções de caráter artístico mais se lembra de ter visto, assim como as motivações que considera como principais para um artista intervir em um espaço público e em um espaço privado por meio de obra de grafitti. A partir dessa condução do participante ao tema da pesquisa então realizada, o graffiti, as perguntas se concentraram em tal temática buscando saber do participante sua compreensão e opinião em relação às intervenções realizadas por meio de graffiti, tendo como parâmetro de auxílio opções fechadas (arte, atividade de caráter social, comunicação, publicidade, poluição visual, crime) e abertas de modo a oferecer maior liberdade ao participante em sua resposta.

Buscando se aproximar, dentro do possível, do atual debate sobre o graffiti em seu tradicional espaço urbano e suas crescentes expressões em espaços privados, foi solicitado ao público participante, inicialmente, sua opinião sobre um eventual valor agregado a uma obra em relação ao local onde é exposta e, em seguida, foram apresentadas ao público, neste instrumento acionado virtualmente, algumas obras de graffiti realizadas em local público e em local privado, buscando, neste momento da participação, sua opinião, inclusive, se tais obras seriam percebidas da mesma maneira no caso de serem realizadas em um ambiente privado ou público, e vice-versa.

Por fim, foi perguntado ao participante a sua relação com graffiti permitindo a identificação do grupo de atores sociais categorizados no estudo (alguém que pratica graffiti, alguém que já encomendou trabalho de um grafiteiro para seu espaço ou financiou algum trabalho afim, alguém que tem observado obras de graffiti em seu percurso pela cidade independente de seu interesse pelo tema). Foi a partir desse momento que perguntas específicas buscaram ampliar a atenção dada a estes três grupos. Como pergunta para o público receptor de uma obra de graffiti no espaço público ou privado (incluindo os artistas e patrocinadores), foi solicitada, por exemplo, sua opinião sobre o potencial de uma obra de graffiti em alterar a identidade visual do local onde é realizado. Como pergunta específica aos patrocinadores de graffiti, foi solicitada, por exemplo, sua opinião sobre a eventual agregação de valor (comercial, cultural, afetivo, etc) ao local. Como pergunta específica para artistas grafiteiros, foi indagado, por exemplo, sua opinião sobre a intencionalidade de suas obras e seu conhecimento sobre legislações e incentivos em relação às intervenções realizadas por meio de graffiti.

3.2 Sobre as análises e reflexões processadas

Como parâmetros gerais para a análise aqui sintetizada e apresentada com apoio das respostas dos sujeitos participantes da pesquisa, explicitamos, de início, que foram preservados suas identidades. A faixa etária predominante das respostas figurou entre 18 a 35 anos, seguida pela referência de 36 a 50 anos; sob esse parâmetro de análise, ainda que o graffiti seja uma expressão jovem tanto historicamente quanto em relação à sua temática, favorecendo, a principio, uma compreensão imediata desse perfil do público interessado em participar da pesquisa, há que se considerar, também, o meio utilizado para o acesso ao instrumento de pesquisa, que em razão da pandemia se conformou exclusivamente por plataformas digitais de redes sociais, meio que também apresenta um número de jovens mais atuante. Brasília, cidade onde se desdobrou este estudo e de onde partiram os questionários virtuais, concentrou o maior número de respostas, assim como outras Regiões Administrativas do Distrito Federal e a grande cidade de São Paulo, que também apresentou um percentual significativo de respostas - Osasco, Resende e Fortaleza também figuraram entre as respostas ampliando essa participação dos atores sociais que complementaram a pesquisa.

A pergunta mais genérica, referente ao espaço urbano e à percepção das intervenções pela cidade, atingiu um percentual substancialmente afirmativo, reforçando as considerações gerais e os dados específicos da literatura afim sobre o crescimento das obras de graffiti nas cidades.

De fato, a presença crescente do graffiti no espaço urbano, por características específicas como seu número crescente, sua grande escala e sua influência cada vez maior, dificulta uma invisibilidade dos mesmos por parte dos transeuntes da cidade contemporânea.

Cabe ressaltar que, nesse crescimento de tal prática artístico-cultural, seus espaços de expressão também se diversificam, daqueles deixados à margem do desenvolvimento citadino e ocupados pelo graffiti inicialmente (como as superfícies de muros abandonados, empenas cegas de edifícios e as estruturas de viadutos) àqueles hoje revitalizados a partir do graffiti ou revitalizados tendo essa expressão como uma das intervenções ali implementadas como estratégia a uma ideia de requalificação espacial. A fala de muitos dos inquiridos se vinculou a um caráter enobrecedor dado pelas obra de graffiti aos locais onde os visualizaram: “(…) os que ficam ao longo da EPTG[Estrada Parque Taguatinga - Distrito Federal] sempre me chamam atenção, acho que de uma certa forma dão ‘vida’ ao camino” (Inquirido 38, 2020); “Muitas delas [obras de graffiti] me chamam atenção por gerarem destaque nos locais onde estão inseridas” (Inquirido 51, 2020); “Os graffitis chamam atenção positivamente, acredito que criam uma identidade pro local” (Inquirido 18, 2020).

Quando questionados sobre sua percepção das obras de graffiti (Figura 7), ainda que as respostas tenham sido auxiliadas ou direcionadas por palavras e expressões (não casuais e aptas a escolhas múltiplas), a abertura para respostas livres também conferiu o caráter de liberdade dado ao público participante ao expressar sua opinião.

Figura 7 A assimilação do graffiti pelo público quanto aos seus eventuais significados.Fonte. Autores. 

Diante das respostas, pode-se perceber que quatro temas emblemáticos ao graffiti na atualidade figuraram entre os mais optados pelo público como motivações significativas para uma obra de graffiti: como seu caráter expressivo e social, sua comunicabilidade, e seu vínculo com a publicidade. Já a intencionalidade de uma transgressão, motivadora das primeiras obras de graffiti, ainda que presente em muitas obras na atualidade, no presente contexto de celebração mundial do graffiti, foi pouco lembrada pelo público participante. Destacamos a seguir a fala de alguns participantes que evidenciam essas específicas motivações mais encontradas no conjunto de respostas recebidas: “Trazer um pouco mais de acolhimento ao transeunte, além de ser uma forma divertida e descontraída de levar arte às pessoas de forma gratuita. É uma forma de divulgação de determinada expressão artística também” (Inquirido 2, 2020); “Acredito que é uma forma de expressar ideias, pensamentos, conflitos, ou as vezes é só um momento de lazer” (Inquirido 40, 2020); “Divulgar seu trabalho e tornar um espaço público mais atraente visualmente” (Inquirido 22, 2020).

(...) existem artistas que apenas querem compartilhar seus sentimentos com a sociedade, outros que vão além de compartilhar e querem provocar tais sentimentos (felicidade, raiva, solidariedade, alegria, ansiedade...), outros querem criticar ou satirizar um senso, e alguns apenas fazer arte pela arte sem definições, padrões, ou motivos. O espaço, nada mais é, que uma plataforma. Uma tela em branco, cinza, amarelo... tanto faz. (Inquirido 33, 2020).

Outro questionamento lançado ao público e bastante pertinente à reflexão, referente ao espaço de exposição de obras de graffiti poder influenciar em sua percepção, apresentou um resultado substancialmente mais favorável a uma diferença entre espaços públicos e privados, não apenas em sua propriedade e uso (características distintivas mais comumente consideradas), mas também na vinculação desses dois universos a ideias ainda intangíveis.

Isto porque, além de a maioria do público participante da pesquisa ter considerado o lugar ou espaço de expressão como um fator de agregação de valor ao graffiti, a maioria dos participantes também considerou (a partir de obras de graffiti presentes no instrumento de coleta de dados) obras expressas no espaço público como passíveis de serem consideradas sob outros olhares no caso de sua expressão em espaços privados, ao passo que a maioria dos participantes não considerou uma alteração significativa no caso de obras expressas em espaços privados serem consideradas em um espaço público. O breve histórico do graffiti, como sua origem transgressiva também auxilia em nossa compreensão de como as obras expressas no espaço público ainda hoje tendem a ser vinculadas a um caráter de maior liberdade, de resistência e grito, algo que, de certo modo, ainda não tem sido verificado na maioria das obras expressas em espaços privados, sob encomendas - sob interesses temáticos e, consequentemente, sob maior controle e universos amenos assim geralmente expressos. Destacamos abaixo a fala de um dos inquiridos que sintetiza percepções sobre a interferência de um graffiti em espaços públicos ou privados:

Sim, [os graffitis] mudam completamente a percepção e relação com o espaço. A presença de um grafite pode mudar também o valor agregado à esse espaço, seja financeiro atraindo possíveis clientes para uma área comercial, seja artística tornando o espaço visualmente agradável, seja afetivo caso o observador conheça ou tenha relação com a história daquele grafiti (Inquirido 85, 2020).

Por fim, foram feitas perguntas ao público participante vinculadas à sua relação como o graffiti no intuito de uma maior aproximação com os três perfis de grupos de atores sociais categorizados durante a pesquisa. Pelas respostas obtidas (Figura 8), a grande maioria do público participante da pesquisa se identificou como observadora dessa expressão artístico-cultural sem vínculos com a mesma; outra parte considerável do público se identificou como artista praticante de graffiti; um pequeno percentual dos participantes se identificou, entre as três opções dadas, como patrocinadora de trabalho/s de graffiti.

Figura 8 A relação percentual dos perfis do público participante da pesquisa (artista, patrocinador, espectador). Fonte. Autores. 

A partir desta busca por eventuais similaridades e distinções nas respostas por grupos, as respostas dadas às perguntas específicas lançadas a cada um deles também contribuíram para as reflexões sobre a temática.

No que se refere ao grupo social constituído pelo público observador ou receptor de uma obra de graffiti no espaço público ou privado (incluindo os artistas e patrocinadores), a grande maioria dos participantes respondeu afirmativamente sobre o potencial de uma obra de graffiti em alterar a identidade visual do local onde é realizado, enfatizando, sobretudo, o caráter “artístico” e “social” em meio a suas respostas sobre essa eventual influência do graffiti no espaço.

Quanto ao grupo social constituído por pessoas que de algum modo já patrocinaram obras de graffiti, sua opinião sobre a eventual agregação de valor ao local a partir de uma intervenção de graffiti evidenciou, sobremodo, o valor “artístico” e “publicitário” passível de agregação ao espaço em questão. Já no caso das respostas do público que se identificou como artista grafiteiro, entre seus estímulos e incentivos em relação às intervenções realizadas por meio de graffiti também se destacou a dimensão expressiva ou “artística” da obra, assim como seu poder de “comunicabilidade” e, também, seu grau de “transgressividade”.

Como exemplificadoras dessa linha de respostas mais identificadas entre as respostas recebidas destacamos as seguintes relacionadas, cada uma, a um sujeito de um dos três grupos de atores sociais: “(...) o grafite é uma arte e uma intervenção artística pode agregar valor comercial” (Inquirido 25 ‘Patrocinador de graffiti’, 2020); “Nunca encomendei, mas sendo da publicidade sei que ser for encomendado de maneira que o graffiti comunique os valores da marca, com certeza, agregará valor comercial ao local da marca. Isso vai depender do público” (Inquirido 14 ‘Espectador’, 2020).

O que se apoia é a pintura artística, pois o graffiti é uma modalidade de transgressão que não busca apoio, nem tudo que se pinta na rua é graffiti e nada que se pinte dentro de casa ou numa iniciativa comercial é graffiti. Muralismo é uma coisa, graffiti outra, pintura comercial e muralismo podem estar juntas, mas graffiti sempre será uma coisa como arroz nunca será feijão (Inquirido 11 ‘Grafiteiro’, 2020).

De modo geral, podemos dizer que as lógicas discursivas variam de acordo com as variáveis estruturais contempladas em nossa pesquisa; dependem da posição de cada ator em relação ao grafite, como objeto, conforme representado graficamente abaixo (Figura 9). Na perspectiva dos artistas (a), o objeto surge após um processo criativo; os patrocinadores têm uma relação, por um lado, de mecenato (b), com os artistas e, por outro, um discurso que percebe o grafite como expressão artística (c); por fim, entre o público (d), são marcadamente perceptíveis as narrativas de valorização do grafite como obra de arte, ainda que, de acordo com as respostas da pesquisa, também haja uma pequena constatação de indiferença e rejeição dos mesmos em relação ao grafite com o qual se depara em seu cotidiano.

Figura 9 A relação do público participante da pesquisa (artista, patrocinador, espectador) com o objeto de análise. Fonte. Autores. 

Compondo um projeto de pesquisa posteriormente continuado, as respostas aqui sintetizadas, apenas uma parcela de um conjunto de dados significativos permissíveis a outras análises, auxiliaram, contudo, na sistematização desse estudo sobre a temática do graffiti e na elaboração das considerações supracitadas e abaixo recapituladas.

4.Considerações finais

Este estudo, pautado em uma abordagem qualitativa, também permite considerar a importância de (re)conhecimento das parcelas sociais que produzem o espaço urbano ou são de algum modo e sob algum grau transformadas por ele.

A ainda curta trajetória histórica do graffiti como uma expressão artístico-cultural, já repleta de ressignificações bem conhecidas, permitiu em nosso mergulho em um tema tão envolvente e instigante direcionar esforços de reflexão também sobre o campo dessa expressão em que o graffiti se manifesta. Na busca por identificação dos participantes dessa expressão das maneiras mais gerais, a categorização dos três grupos de atores sociais que pautaram, sobretudo, o direcionamento final da pesquisa, tal escolha se mostrou uma decisão pertinente ao ampliar vozes nem sempre ouvidas como a dos grafiteiros e grafiteiras, assim como o público observador e/ou fruidor de suas obras e, ainda, o crescente número de indivíduos que têm patrocinado obras desse gênero por interesses estéticos, comerciais ou mesmo por decisões culturais.

Quanto às considerações mais significativas em relação ao processo de pesquisa gerador deste estudo, salientamos, primeiramente, aquelas relativas às leituras de referência iniciais que, em vários aspectos, tiveram rebatimento e certa complementaridade nas respostas obtidas posteriormente pelo questionário elaborado para os três grupos de agentes sociais aqui categorizados e considerados participantes complementares da reflexão sobre a temática enfocada: os grafiteiros, o público receptor e o eventual patrocinador de tais obras. Ainda que o questionário elaborado tenha sido aplicado em meio online, em razão da pandemia, foi possível alcançar um universo amostral significativo e que, inclusive, tendo sido inicialmente pensado para circular em Brasília, tendo ocorrido o recebimento de algumas respostas provenientes de cidades de outros Estados brasileiros, tal ampliação do painel amostral foi valorizado e considerado pertinente em meio às reflexões engendradas durante o processo de análise dos dados.

Sobre o objetivo lançado pela pesquisa - a busca por assimilações do graffiti nas cidades, nos espaços públicos de suas paisagens urbanas e, mais recentemente, em ambiências privadas - seu alcance pode ser percebido por este entrecruzar de referências, teóricas e empíricas, que nos permitem entender essa modalidade de expressão artístico-cultural representada pelo graffiti e percepções por vezes vinculadas a universos sociais específicos.

De início, quanto ao produtor da arte urbana, a partir deste conjunto de dados obtidos com foco em Brasília, percebe-se que, ao seguir as “linhas guia” da cidade ou chamarizes para expressão, ainda que estes sujeitos venham transitando de uma esfera alternativa para o comercialização de sua expressividade, a intencionalidade que move tantos artistas se mantém presente em suas obras ou em seu discurso na maioria dos casos e, mesmo essa transição, tem sido considerada por muitos deles como uma outra forma de transgredir, ao romper uma barreira social.

No que se refere ao público da arte, seu fruidor, a partir do mesmo conjunto de dados aqui acionados, podemos evidenciar que, este pode enxergar o diálogo entre o graffiti e o espaço urbano por sua consideração como um elemento de embelezamento, (re)qualificação ou “gentileza urbana”, uma ação voltada a contribuir com a melhora da cidade, apesar de, em muitos casos, as intenções transgressoras de um graffiti criticarem a urbanidade e intervirem na espacialidade por procedimentos que ultrapassam os ideais estéticos e até mesmo os questiona e os contrapõe.

Também a partir desses dados, no que diz respeito ao eventual patrocinador de uma obra artístico- cultural como o graffiti, esteja representando a esfera pública ou privada, as expectativas de estetização, revitalização e publicidade de um espaço de propriedade pública ou privada permeiam as dimensões simbólicas da obra, sejam de ordem estética, econômica, etc. Se de fato o privado limita a perspectiva do homem (Arendt, 2007), nessa transposição do graffiti, de expressão de um movimento social através de uma intervenção urbana para um bem de consumo e fruição estetizado, vem sendo geradas as mais diversas considerações, tanto pela crítica especializada quanto pelos próprios artistas. Sob tal contexto, uma aproximação ao campo e a uma realidade específica se configura, como consideramos e buscamos aqui, como um aporte para reflexões mais específicas no que se refere à complexidade de um determinado lugar e a realidade ali manifesta, como no caso de Brasília, foco da análise.

Mesmo que tenhamos apresentado aqui breves reflexões vinculadas tanto à literatura especializada sobre a temática do graffiti (que também vem se enriquecendo continuamente por sucessivas considerações) quanto à sua normativa em nossa localidade de estudo (Brasília e Distrito Federal), consideramos ter sido também substancial para o direcionamento da investigação as reflexões complementares que pudemos acrescer ao estudo por meio das respostas do público participante.

Essas respostas, que foram aqui sintetizadas a partir de uma pesquisa que tem se desdobrado em outras complementares, nos permitiu ultrapassar a objetividade de um estudo sobre o tema na atualidade ou em uma localidade e percebê-lo a partir das nuances subjetivas dos grupos de atores que atuam neste campo e de algum modo se vinculam a tal temática e foram sensíveis à atenção a eles solicitada sob circunstâncias tão específicas e difíceis como as vivenciadas por todos desde 2020.

5.Notas Finais

O presente artigo, elaborado pela colaboração entre três pesquisadores, consiste em um desdobramento do Projeto de Pesquisa desenvolvido no ano de 2020 pela arquiteta e artista grafiteira Raquel da Silva Bastos sob orientação de Sávio Tadeu Guimarães, professor do Centro Universitário de Brasília (CEUB) e pós-doutorando em Sociologia na Universidade da Coruña (UDC) sob supervisão do professor Manuel Garcia Docampo e apoio de bolsa de estudos concedida pela Fundação de Apoio à Pesquisa do Distrito Federal (FAPDF).

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Recebido: 01 de Fevereiro de 2022; Aceito: 01 de Abril de 2022

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